Opinião: ‘Contos’ de Franz Kafka

contos_KafkaDepois de ‘A Metamorfose’, a metamorfose. ‘Contos’ é a consagração de Kafka na minha prateleira de favoritos.

Tal como os animais que tendem a aparecer-me nas ocasiões mais… estranhas, também com os livros padeço desse carma. Foi assim que ‘Contos’ me saltou à vista, encaixado por baixo do tampo duma daquelas mesas de centro, em casa de uma amiga.

Eu, que odeio pedir livros emprestados, dei comigo a fazê-lo. E, mais uma vez, recordo porque é assim. Afeiçoei-me e agora vai ser um problema em arranjar um exemplar meu… e devolver este. Mas, ainda tenho mês e meio até ter oportunidade para o devolver pelo que espero, entretanto, desapegar-me 🙂

Este livro só me trouxe problemas. Primeiro, veio comigo à força. Depois, não consegui pousá-lo. A seguir, tentando devolvê-lo a tempo e horas à dona, enchi o telemóvel de fotografias de textos e o caderno de excertos. Então, achei que tinha de partilhar o melhor de Kafka… acabei a apontar números de páginas ou a tentar transcrever a coisa quase toda. Agora, estou aqui encravada com um artigo enorme e a rezar para que tenham paciência… Kafka vale a tolerância que tiverem comigo.

Esforcei-me por escolher apenas os que mais me tocaram. Tarefa difícil em que ainda me encontro a ponderar o que incluir e o que deixar de fora. Mas como a obra de Kafka se encontra amplamente publicada, em diversas compilações de contos e minicontos, não vos será difícil ir por título e encontrar os que mais vos acicatarem. Por isso, vamos ver se faço jus ao que li e se vos incentivo a ir espreitar…

‘O Vizinho’ é uma pequena pérola sobre paranoia. Os estratagemas no mundo dos negócios, a dissimulação, a sorte dos que são espertos demais para serem honestos (onde aplico a frase que toda a minha vida ouvi “só trabalha quem não sabe fazer mais nada”, com direitos de autor do paizinho), e a constante possibilidade da personagem ser apenas louco. No final questionamo-nos sobre tudo e, tal como na vida, cada um concluirá aquilo para o qual se inclina habitualmente. Um tema com o qual nos relacionamos, e que nos faz contemplar outras histórias e outras desconfianças.

‘Um Híbrido’. As metáforas, as metáforas… Kafka é exímio nas suas metáforas. Este é um daqueles contos que lês e relês, e continuas a pensar que há mais ali do que o que leste (acontece na maioria das suas histórias). Esta é a história de um animal (ou dois?) que não pertence a lugar nenhum. Ele é único. Cobiçado, observado, adorado e, mesmo, amado. Mas, na dádiva que é a vida, não deixa de ser único (o único da sua espécie) e de estar só. O dono que narra a história do seu animal sabe-o e, tal como ele próprio, sabe que tem de suportar a solidão mesmo que desejasse outra coisa.

“Talvez a faca do talhante fosse para este animal uma libertação, mas como herança que é, sou obrigado a negar-lha. Ele terá de esperar até que a respiração se esvaia por si mesma, ainda que por vezes me olhe como que com olhos humanos e inteligentes, incitando-me ao acto que a ambos nos passa pela cabeça, por vezes.” Franz Kafka ‘Um híbrido’

‘Uma Confusão Vulgar’. Brilhante. Os desencontros da vida numa explicação quase matemática. Por vezes, por mais que façamos, parece que há sempre algo que reorganiza a situação, distorce o tempo e impede que se concretize… uma espécie de destino que se desenrola de forma (ir)racional. Nos hiatos, e por A+B, não compreendemos como se desenrolou assim, apenas que o fez.

‘O Silêncio das Sereias’. A genialidade (ou a ingenuidade?) de Ulisses ao enfrentar o canto das sereias. No silêncio resistiu-lhes… ou não havia nada a que resistir? O silêncio é a impossibilidade de resposta e, Ulisses, é o tolo que pensa que venceu.

‘Camaradagem’. Sobre a pertença a algo. As razões que não se explicam e as justificações que se inventam quando escolhemos aqueles que nos pertencem. E as desculpas que arranjamos quando alguém não nos diz nada, por mais que se esforce por pertencer… há coisas que não se explicam. Existem ou faltam.

‘O Homem do Leme’. O comportamento de grupo na aceitação da liderança. A natureza humana que escolhe ignorar o correcto pelo conveniente. Aquilo com que nos deparamos vezes e vezes sem fim…

‘O Pião’. Sobre procurar o sentido da vida nas pequenas coisas, no mundano, nos comportamentos sem sentido.

‘Pequena Fábula’. O rato que não sabe para onde ir. O encurralado que para chegar a algum lado só tem de mudar de direcção. Aquele que, não sabendo para onde vai, escolhe ignorar que o desfecho é sempre o mesmo. Pois, mesmo mudando de direcção, já não lhe pode fugir. E se viveu todo o início em medo, quando o perde, já chegou ao fim e nada mais há pelo que viver.

‘Advogados de Defesa’. Tanta coisa em três páginas… Para que precisamos de um advogado de defesa? De que nos defendemos nós? Porque o procuramos quando sabemos que ele não existe? Porque persistimos? Porque não admitimos estar errados? Porque é que o único caminho é continuar a viver, a procurar, a subir escadas e abrir portas? Estaremos no sítio errado? Porque somos tão obstinados? Porque escolhemos o que escolhemos? Porque não desistimos mesmo quando não há nada para encontrar?

‘Desiste!’. Tão curto e simples que até parece fácil… Se não sabes o teu caminho, ninguém te irá indicá-lo. Se caminhas, mas não sabes para onde vais, não podes lá chegar. Se não sabes o que queres, como podes obtê-lo? E, não perguntes… porque os outros mais depressa te mandam desistir do que te indicam (ou apoiam) no teu caminho. Se não sabes, não perguntes nada… se sabes, então não precisas perguntar, apenas vais, não questionas.

‘Sobre as Parábolas’. Que diz qualquer coisa como: transformas-te em parábola e livras-te dos problemas quotidianos, perdendo no mundo da parábola mesmo se ganhas na realidade. Um jogo de palavras e significados tão ao jeito de Kafka.

‘Roupa’. Sobre o sentirmo-nos usados pelos outros, a vida leviana e a sensação de novidade que se gasta e desaparece.

‘Excursão às Montanhas’. O eco daquilo que emitimos e preferirmos viver na inconsciência para, pelo menos, podermos fingir que alguém nos ajuda e que somos felizes assim.

‘A Janela para a Rua’. A harmonia do ser com o mundo está na interacção entre eles, mesmo que seja só olhar o mundo pela janela.

 ‘No Eléctrico’. O deslumbramento ao observar uma estranha no eléctrico. A mística feminina e o que ela provoca no homem.

 ‘Reflexões para Jóqueis’. Sobre as vitórias pessoais e as reacções que elas provocam. Como essas vitórias transformam a forma como os outros nos vêem e os seus comportamentos perante elas.

 ‘Infelicidade’. Deixo-vos uma citação que, para mim, contém a essência deste conto

“Vê-se mesmo que nunca falou com um fantasma. É que nunca se consegue obter nada de concreto da boca deles. É sempre isto e aquilo. Estes fantasmas parece que são mais esquivos em relação à sua existência do que nós próprios, o que não é de estranhar, dada a sua fragilidade.”

 ‘Má Sorte de ser Solteiro’. Sobre a vida solitária e a solidão, e o que nos resta senão recriminarmo-nos por ter sido essa a nossa escolha.

‘Resoluções’. A recusa em viver. A passividade que abraçamos e que nos permite recusarmo-nos a perseguir uma vida preenchida.

‘A Aldeia Mais Próxima’. A vida é curta. Nada nos garante sequer que cheguemos à aldeia mais próxima quanto mais ao destino que nos propomos a viver.

E, por fim, ‘A Ponte’. Quando a ligação entre Sonho e Realidade é quebrada, quando deixamos de estar em equilíbrio com ambas, sofremos a inevitável destruição do ser. O homem é uma ponte entre sonho e realidade. Quando o seu âmago é perfurado essa ponte, inevitavelmente, cai. Este é, sem qualquer margem para dúvidas, um dos meus favoritos (dentro dos favoritos).

Notei que, apontar os contos de que mais gosto, é tarefa exaustiva… Comentá-los foi ainda pior. Kafka é um mestre de significâncias, um monstro das metáforas. Um vislumbre da sua obra é amá-la mesmo que conclua que nunca serei capaz de abarcar tudo o que tenta transmitir, apenas aquilo para que estou preparada a notar em cada leitura.

Outros (Bukowski) usaram-no como exemplo de excesso de mensagens mas, para mim, Kafka contém a dose certa daquilo que a literatura tem de melhor: toca o intangível do que nos assombra.

E, agora, percebem porque será tão difícil separar-me dele?

ΦΦ

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