#vida de escritor… pedreiro… lojista… pintor… administrativo

vida de escritor

Numa das minhas voltas pelo Instagram (@saragfarinha), deparei-me com uma imagem que me serviu que nem uma luva.

Sob a hashtag #writerslife, a fotografia de uma rapariga, de bata vestida, e na legenda lê-se ‘Physical therapist by day, writer by night’ ou ‘Fisioterapeuta de dia, escritora à noite.’

Eis o meu choque e, (garanto-vos) um supremo ar de espanto, porque nunca me tinha ocorrido que fosse legítimo publicar algo assim.

Como era possível alguém expôr-se daquela maneira?

Assumir que há outras coisas importantes na sua vida que não são o trabalho oficial e a família? Como era possível ?

Não é que não faça sentido. Porque faz. Afinal, somos a soma de todas as nossas partes do dia e da noite. Mas, ver aquilo que fazemos, nos tempos em que não estamos a trabalhar para os outros, assim tão público foi um choque.

Sim, estou consciente que se me pesquisarem no Google também me encontram com facilidade. Mas, parece que conto sempre com a pouca vontade dos outros de se darem a esse trabalho. E, até aqui, tem funcionado dessa forma.

Se tratamos a nossa vida vivida de dia, junta com aquela que vivemos nos nossos tempos livres, iremos sempre ter situações em que ambas colidem. As exigências do dia tentam sobrepor-se. As pessoas comentam, usam e tentam manipular. Transforma-se em mais um obstáculo à prossecução da arte que, verdadeiramente, nos alimenta a alma.

Sim, porque já lá vão os tempos em que o escritório emprestava a máquina de escrever a Fernando Pessoa para que ele pudesse, nos tempos livres, dactilografar os seus poemas.

Se assumimos ambas como realidades, torna-se difícil gerir os inputs não requisitados sobre a vida dos tempos livres. Diz-me a experiência que há gente que acha que tem de dar opinião sobre tudo o que não lhes diz respeito. Abertamente, ou não.

Complica, também, quando se pressupõe que tens de abdicar das tuas horas pessoais em favor das pagas por outrém. Logo, abdicas de ti, como indivíduo, em prol do trabalho oficial… eu, chamar-lhe-ia outra coisa.

Na minha realidade, misturar as duas coisas sempre constituíu um desafio, senão uma absoluta má ideia. E, daí o meu choque quando me cruzo com alguém que declara aberta e publicamente, com fotografia pessoal incluída, que tem outras actividades a decorrer em simultâneo.

Neste meu 2018, o ano do Crescimento Criativo, têm sido muitas as oportunidades de crescer de forma, por vezes, dolorosamente criativa. Esta chamada à realidade, de coexistência de dois mundos, foi uma delas.

Se faz parte de quem sou e da minha realidade diária, não tenho porque esconder. Na verdade, nem deveria ter sequer essa preocupação. Mas tenho.

Peocupam-me as represálias daquilo que publico. Como este artigo. Tantos outros foram polidos até à exaustão porque não posso dizer isto, mostrar aquilo, inferir algo e, Deus nos proíba, dizer a verdade tal como eu a vejo (o que não significa que seja como ela é… filosofia, e outras cenas que tais à mistura).

Porque, no final do dia, acredito que muitos de nós estamos fartos de viver como se fôssemos de pedra. Como se ter coração seja um defeito que precisamos corrigir.

Muitos de nós andamos, há décadas, fartos de fingir que o que somos obrigados a fazer durante o dia é que conta. Que o dinheiro que não temos é que conta. Que sacrificarmo-nos, e aos nossos, a exercer algo que toleramos, para fazer uns trocos que nunca nos tiram da dependência de outrém, e que servem apenas para alimentar a enorme sociedade consumista, porque estamos demasiado cansados para poupar na comida extra, na roupa de marca, ou nas tralhas que amontoamos em casa, é que é o caminho a seguir.

Que esse dinheiro compensa a nossa ausência na vida familiar. Ou que compensa a frustração que sentimos por nunca perseguirmos os nossos sonhos. Não compensa.

A vida oficial não tolera gente com opiniões ou ideias diferentes das aceites pela maioria. Ter ideias próprias, num mundo que beneficia da falta de discernimento dos outros, é perigoso. Ter ideias próprias e torná-las públicas é ser um alvo. Ser escritor implica explorar as ideias que se tem. Acrescentar-lhes, brincar com elas, fazê-las crescer. Diferentes ou não, são nossas para usar. E, depois de se ver algo, não pode voltar a ser como se nunca o tivesse visto. Ter ideias e sobreviver pode ser um desafio.

Porque, no final do dia, a pergunta que sempre nos colocam é: o que podes fazer? O que podes fazer sem ser aceitar?

Sacrificares-te, mas por outras coisas. Fazeres a mesma quantidade de esforço mas por aquilo que gostas. Dói? Sim. Horrores. Mas, dói mais se, no final da vida, olhares para as tuas escolhas e arrependeres-te de teres exercido o mesmo esforço a construir os sonhos dos outros, ao invés dos teus.

Por isso, sim. Foi um choque ver publicamente misturado ser-se fisioterapeuta e escritora. Talvez porque ainda não descobri esse equilíbrio em mim. Talvez nunca venha a descobri-lo. Talvez seja algo que apenas existe.

Sim, há muitos escritores, actores, realizadores, bailarinos, dirigentes de clubes de futebol e outras coisas que tais, assumirem-se como multi-profissionais. Conheço muitas pessoas que são enfermeiros, talhantes, mecânicos, ou outros que tais, e depois são também pintores, escritores, fotógrafos, desenhadores de moda, o que for.

Mas, são-no de verdade? Somos de verdade? As nossas verdades valem alguma coisa neste mundo de mentiras?

Vou escrevendo um bocado aqui. Fotografando umas coisas ali. Publicando pouquinhos aqui e ali. Construindo sonhos aos (ínfimos) bocadinhos. Adiando o inevitável: a morte da alma que tenho ou a queda em desgraça que nos acomete a todos os que se recusam a quebrar.

Neste mundo de mentira, vendemos as nossas verdades. Entregamos as nossas vontades àqueles que não sabem mais sonhar.

Por isso, sim. Choca-me ver misturadas as duas partes de mim que não sei se alguma vez coexistirão de forma saudável. Mas, continuo a Crescer Criativamente. Talvez um dia cresça o suficiente…

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[cryptothanks]

 

 

5 comentários em “#vida de escritor… pedreiro… lojista… pintor… administrativo”

  1. Sara, me fascinó lo que planteas en este post.
    Lo de coexistir en los dos mundos. Yo tengo también una mascara que me pongo cuando se oculta el sol, y florece en mi el deseo de exorcizar mis demonios a través de palabras que mis dedos van dejando salir.
    Cordial Saludo.

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