Ao terminar ‘The Stranger’ de Albert Camus pergunto-me: excesso de racionalidade ou incapacidade de sentir?
A aceitação total e absoluta daquilo que rodeia Mersault, a inexistência de sonhos, o cinismo como personalidade, o vazio que ele demonstra, como se viajasse pela vida indiferente ao que acontece, a insensibilidade que o impede de experienciar alguma coisa real, escudando-se em racionalizações e mantras de normalidade absoluta. Uma espécie de estado de choque que se instala e que demonstra a capacidade humana em aceitar tudo, desde que exposto durante o tempo suficiente.
“I’ve often thought that had I been compelled to live in the trunk of a dead tree, with nothing to do but gaze up at the patch of sky just overhead, I’d have got used to it by degrees.” Albert Camus ‘The Stranger’
O início deste texto apresentou-me a uma personagem que, de tão banal, tão normal, torna-se num ser aborrecido. Alguém que faz o que tem de fazer, que vive o que tem de viver, pronto a justificar tudo o que lhe acontece com a rápida aceitação da indiferença a que este mundo nos acostumou.
Mersault é, de certa forma, um homem ingénuo que aceita com uma estoicidade tudo o que a vida lhe traz. A ideia de punição pelos seus actos, não o afasta da visão banal com que encara a vida. Mesmo acusado, recusa defender-se por artifícios ou qualquer justificação retórica. Dispensa atenuações racionalizando a morte como parte da vida e aceitando a responsabilidade pelos seus actos. Esta recusa é um derrotismo firmado, uma aceitação da inevitabilidade da morte, um assumir que nada faz sentido para lá do simples decorrer dos dias.
“I couldn’t feel an interest in a dead girl. This seemed to me quite normal; just as I realized people would soon forget me once I was dead. I couldn’t even say that this was hard to stomach; really, there’s no idea to which one doesn’t get acclimatized in time.” Albert Camus ‘The Stranger’
O final leva-nos a ponderar se ao aceitarmos essa indiferença, que ajuda a passar pela existência mais ou menos incólumes, nos torna incapazes de reconhecer e lutar pela vida quando esta está em perigo.
A falta de paixão pela vida desta personagem é assustadora. O único vislumbre de sentimentos reais acontece perante a necessidade de reconhecimento de uma entidade em que ele não acredita. E, mesmo aí, não pelos motivos que seriam os naturais, mas pela necessidade de provar que está certo. Que estaria certo até aos últimos instantes de vida e que ninguém lhe poderia ensinar nada, nem mostrar nada que ele não soubesse sobre a Morte, que ele já não soubesse.
“Living as he did, like a corpse, he couldn’t even be sure of being alive. It might look as if my hands were empty. Actually, I was sure of myself, sure about everything, far surer than he; sure of my present life and of the death that was coming. That, no doubt, was all I had; but at least that certainty was something I could get my teeth into—just as it had got its teeth into me. I’d been right, I was still right, I was always right.” Albert Camus ‘The Stranger’
Em Mersault, não há esperança. Há um estado que reconheço como uma espécie de choque que nos tolda os sentidos e nos faz reagir de forma indiferente e desconexa com aquilo que realmente sentimos. Os acontecimentos sucedem-se banais e irrelevantes e, mesmo aquele que é um acto de loucura, possui em si um determinismo assustador mas cujas as consequências são absolutas. E tudo aquilo que a princípio nos parecia banal: a lágrima que não cai, as palavras ditas, a vivência diária feita de actos normais, tudo isso se conjuga para que o desinteresse seja interpretado como vazio. E, a aceitação incontestada, como calculismo.
“I’m on your side, though you don’t realize it—because your heart is hardened.” Albert Camus ‘The Stranger’
Uma grande história sobre a vida e a morte, sobre o resultado de banalidades inconsequentes, sobre a ausência de fé. E, se podemos aprender algo com este texto é, a inacção também é acção e quem não reage de acordo com o que é esperado pode ver-se envolto nas presunções alheias e sujeito a cumprir a pena máxima.
“I laid my heart open to the benign indifference of the universe.” Albert Camus ‘The Stranger’
Que nunca sejamos apanhados na indiferença. Atrás da carapaça que corrói a alma, mas não a protege das reviravoltas da vida. Viver sem intenção ou comoção não é sinónimo de vida plena. É sim, um artifício manhoso atrás do qual nos escudamos, mas que de nada serve para evitar a dor à qual a existência sempre nos conduz.
Um texto filosófico brilhante sobre a natureza humana, o conformismo, a incapacidade de amar, os artifícios da justiça, a punição e a aceitação das circunstâncias da vida e da inevitabilidade da morte, que muito me deixou para ponderar. Aconselho…
Φ
Artigos Relacionados:
Opinião: ‘Interview with the Vampire’ de Anne Rice
Opinião: ‘Manuscrito encontrado em Accra’ de Paulo Coelho
Opinião: ‘Todo o anjo é terrível’ de Susanna Tamaro
ΦΦΦΦΦ
Gostaram deste artigo? Então subscrevam este blogue e recebam todas as novidades por e-mail.
Gostei bastante do seu post, do livro já não posso dizer o mesmo. Infelizmente não tenho grande apetência para a filosofia e não percebi muito sobre o livro achando-o super banal e com uma história sem “açúcar” nenhum.
Gostei de conhecer o seu blog. Parabéns está fantástico!
http://comunidadefantastica.blogspot.pt/
Obrigada, Inês. Seja bem-vinda a este cantinho 🙂