Por vezes, é mais fácil esfregar o chão da casa-de-banho do que sentar-me e criar qualquer coisa… e, notem, não há tarefa que mais abomine do que limpar uma casa-de-banho, nem actividade física que mais me magoe do que estar encurvad-o-debruçada a limpar chão.
Sei que esta dificuldade em auto-motivar-me ganha outra dimensão quando não tenho ninguém que exija ver o que tenho feito.
E, sejamos francos, ninguém quer ler as nossas produções artísticas, não sem receberem uma qualquer recompensa… mas, só não querem porque não estão motivados da forma correcta. Adorariam, se estivessem motivados para tal (piadola!!).
Sabem do que falo? E como ultrapassá-lo?
Quando falamos de uma actividade que sentimos ser um passatempo, a dificuldade atenua-se, porque pensamos sempre que aquela é a coisa que fazemos por puro divertimento.
Porque não somos obrigados a fazê-lo. Porque pode até servir como procrastinação, ao invés de uma outra qualquer actividade, que deveríamos estar a fazer.
Agora, o que acontece quando o que fazemos como passatempo passa a ser encarado como uma tarefa vital?
Sentimo-nos motivados em suficiência para desempenhar? Fazê-mo-lo dando o nosso melhor? Garantimos satisfação a longo prazo quando cedemos à recompensa pelo trabalho feito? Arranjamos um sistema de recompensas por esforço feito? Uma lista de objectivos a cumprir?
Posso dizer-vos que, quando comecei a procurar os motivos pelos quais era tão difícil fazer o que era suposto estar a fazer, comecei por investigar o que era a Criatividade.
O que significava ter uma ocupação criativa. O que gerava novas combinações de ideias que potenciavam o trabalho que desejava fazer. O que era o trabalho artístico na sua essência que me permitisse sentir-me sempre inspirada.
Achei que a resposta podia estar em descobrir o que significa ser criativo?
E, sem esquecer que a minha base académica é Sociologia do Trabalho, cujo currículo escolar era formado, em maioria, pelas teorias difundidas pela revolução industrial, pelos pensadores formativos e relacionais, e pela sua evolução, num tempo em que as crenças continuavam (e continuam!!) fixas na ideia de que as pessoas não gostam de trabalhar, e precisam ser controladas, incentivadas e punidas.
É curioso como, mesmo sabendo agora outras coisas, ainda vejo estes conhecimentos imbuídos na minha pessoa, e não apenas no meu percurso formativo. Assim como, vejo as suas manifestações em todos os sítios corporativos por onde passei.
… Nem os sítios que almejavam ser diferentes, o conseguiram de facto. É só olhar para a desconfiança com que se olha para o teletrabalho. O limite da criatividade que se impõe. A falta de critérios de recrutamento apropriados…
Mas, esta é a parte das Ciências Sociais, e das realidades corporativas, que suponho que não vos interesse para nada…
Assim, o que significa ser Criativo, quando o trabalho nada mais é do que Rotina? Tarefas feitas em modo repetitivo, em que é suposto introduzirmos algo, tão criativo e inesperado, que cative os outros…
O que significa Criatividade quando o Trabalho é uma montanha de Rotinas?
Quando falamos de aplicar as teorias do Trabalho, juntando-lhes um pouco de Psicologia, e estudos muito sérios sobre Motivação e Produção Criativa, podemos obter uma resposta mais concreta.
Algo que nos ajude a perceber como funcionamos e o que podemos fazer para trabalharmos nas nossas artes de uma forma mais produtiva.
Parece que…
É a motivação intrínseca que é o princípio da criatividade.
Não são as recompensas oferecidas, nem os objectivos que estabelecemos, porque cada uma destas circunstâncias trazem, ou podem trazer, efeitos perversos a longo prazo.
Olhando para as necessidades humanas, e aquilo que nos incentiva a fazer algo, mesmo quando o retorno do nosso esforço é abstracto, aprendi que precisamos de nos sentir competentes, autónomos e com um propósito.
Quando estas três necessidades são satisfeitas, encontramos a nossa motivação, produtividade e felicidade.
Encontramos motivação dentro de nós (intrínseca) pelo desempenho da função, se sentirmos que somos livres para a fazer, se nos sentimos produtivos e criativos, dominando as técnicas que nos permitem fazer com algum grau de mestria, e se encontramos um propósito muito pessoal para o trabalho que estamos a desempenhar.
Assim, quando pensamos em motivação intrínseca, há que nos perguntar:
-
Somos livres, ou autónomos, para escrever? (ou qualquer outra arte criativa que se enquadre aqui)
-
Dominamos as técnicas, temos espaço para adquirir esses conhecimentos, e sentimos que desempenhamos o trabalho necessário com alguma mestria?
-
Encontramos um propósito maior do que nós próprios nas actividades que a compõem? (em todas as actividades rotineiras, e não rotineiras, que a compõem)
-
Temos uma certa urgência em completar a actividade? Um propósito maior a que acorrer como um concurso em que participar ou construir um portfolio…
E, em simultâneo, não devemos ficar dependentes de:
- Recompensas Externas. “Só faço isto se receber aquilo” não funciona. Dinheiro, reconhecimento de outrem, mais trabalho… nada disto favorece a motivação para continuar a aparecer todos os dias e ser criativo.
- Castigos. “Se não fizer isto, vou amuar… ficar deprimido… desistir…” Porque tratar-nos mal funcionaria para nos motivar? Não compreendo. Amendronta-nos, mas não nos motiva.
- Orientações alheias. Isto não é a fábrica da Ford. Não temos o chefe a dizer como apertar o parafuso, no menos tempo possível, para que a linha de montagem produza o máximo e a pessoa seja o mais eficiente possível. Apenas uma anilha numa gigante maquineta de produção. Precisamos definir o nosso trabalho rotineiro de produção literária/artística.
- Comparações. O que os outros fazem a mim não me diz respeito. O que se vê por fora não é real e não me ajuda a completar o meu trabalho à minha maneira. Comparar o sítio onde estamos na nossa viagem criativa, com o sítio onde os outros estão é um erro gigante. Não há comparação possível entre aquilo que é individual e intransmissível.
Definir as nossas práticas, abrir espaço nas rotinas diárias para crescer criativamente, para colocar o tempo no trabalho a fazer, arranjar o sítio onde trabalhamos da forma que melhor nos sirva, encontrar o propósito naquilo que fazemos…
(apesar da escassa intervenção dos leitores deste blog – serão, na maioria, tímidos? – mantenho-o, há quatorze anos, porque sei que alguns de vós encontram valor aqui, ao ler as minhas aventuras parvas na busca por uma vida de escritora)
… descobrir as motivações intrínsecas para aparecermos todos os dias perante uma página em branco, ou outra forma de arte relacionável, fazer o melhor que sabemos para sabermos mais, e fazermos melhor, e acrescentarmos algum valor a este mundo e, em última análise, encontrarmos um propósito firme nesta vida.
Como manter a motivação quando escrevemos por conta própria?
Esfregar o chão da casa-de-banho, quantas vezes forem precisas, mas aparecer no horário estipulado para as actividades rotineiras-ou-criativas que são determinantes na nossa vida… por muito que as costas me doam.
Encontrar a satisfação profunda (flow) na tarefa que desempenhamos. Porque nos sentimos livres para a desempenhar.
Ver o propósito da nossa arte e de como podemos contribuir para melhorar este mundo. Porque divulgar aquilo em que acreditamos, através do trabalho artístico que produzimos, é determinante para construirmos um sítio melhor onde viver.
Se lhe dermos tempo para entrar em flow, vamos descobrir que a incerteza se transforma em trabalho e, é só isso que é preciso. Acreditar o suficiente para voltar ao trabalho.
***
Referências:
- “Drive, The Surprising Truth about What Motivates Us”, Daniel H. Pink (ISBN 1594488843)
- “Flow”, Mihaly Csikszentmihalyi (ISBN 0060920432)
- Notas da faculdade sobre Sociologia do Trabalho
- Documentário “Uma Questão de Criatividade” (Netflix)
- Documentário “Abstracto: A Arte do Design” (Netflix)
Obrigado pelo testemunho e pela reflexão.
Olá Carlos,
Obrigada pelo comentário.