Escrever uma história baseada em factos reais ou, escrever ficção baseada em histórias verdadeiras, é um projecto que requer ferramentas especiais. Requer atenção a pormenores, discernimento entre facto e opinião, pesquisa e edição profundas e, flexibilidade e objectividade sobre os factos.
Estas são aquelas ideias que temos, à laia de raio fulminante, e que depressa arquivamos para perseguir depois. Eu sei que o tenho feito…
Pessoalmente, acredito que todas as histórias têm algo de verdadeiramente nosso, do autor do texto. Todas as histórias são contadas a partir da nossa experiência pessoal e, por isso, arrisco dizer que têm algo de pessoal que é intrínseco à nossa realidade particular.
Mas, o que acontece quando queremos contar uma história real, que vivemos, como se fosse uma história puramente ficcional? Ou quando queremos contar uma história verídica, que se passou algures no tempo?
As nossas histórias pessoais são a base fundamental das nossas histórias ficcionais. Contudo, quando queremos contar uma história, que aconteceu connosco, acabamos frustrados porque, parece que aqueles sentimentos poderosos desaparecem, quando são colocados na página tal como eles são.
Acreditem! Ando há anos a tentar trabalhar este tema, sem o resultado que quero.
Mas, há por aí muitas histórias verdadeiras que se transformaram em versões ficcionais e que tiveram muito sucesso. O que me está a faltar aqui?
Algumas coisas, parece-me.
Tenho investigado o tema e descobri umas coisitas sobre como escrever uma história baseada em factos reais:
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Ser objectiva e não me envolver, pessoalmente, com a história.
É um pouco como aquela situação de desaconselharem-se médicos a operar familiares ou pessoas muito próximas. Também nós, autores, ficamos cegos com a emoção que uma história nos causou.
Isto pode ser difícil de fazer. A história é nossa. Vivemo-la de uma forma intensa. Construímos castelos, ideias e sentimentos a respeito e… temos de ser objectivos na forma como tratamos a nossa história. Este não é o momento de confundir o que sentimos sobre algo com a possibilidade de contar uma boa história. As personagens têm de ser construídas como ficcionais, como entidades separadas de pessoas reais, incluindo de nós próprios. A história tem de ser contada da forma mais adequada para o nosso leitor, não para resolver assuntos ou defender algum ponto de vista pessoal.
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Saber o que se quer partilhar com o leitor ou conhecer a premissa da história.
Não escrevemos nada (de jeito, pelo menos) se desconhecermos a premissa base da história que queremos contar. Enquanto uma história imaginada, dedicamo-nos a construir a premissa que queremos elaborar. Com uma história adaptada da realidade, e se queremos ser objectivos e ter sucesso na partilha da história, temos de identificar primeiro qual é a premissa da história.
Há elementos que, por mais verdadeiros que sejam, não têm qualquer interesse ou relevância para o recontar desta história. E, tudo o que não serve o propósito primordial da narrativa deve ser cortado. É importante ser-se objectivo com a mensagem que se quer transmitir, servindo a história ficcional primeiro. Outras considerações, sobre um qualquer assunto que não sirva para esta ficção, deve ser trabalhado noutro suporte que não a história ficcional.
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Privilegiar uma boa narrativa sendo flexível com os factos
Se não estamos dispostos a mudar os factos, para reconstruir a narrativa de uma forma interessante, não devemos querer recontar uma história verdadeira. Uma história ficcional é isso mesmo: ficção. Pode ser baseada em factos verdadeiros, pode ser um recontar adaptado de uma história pessoal, pode ser uma ficcionalização de factos ocorridos. O que ela não pode ser é infiel ao verdadeiro objectivo de uma narrativa ficcional: contar uma história poderosa.
Encarar os factos com flexibilidade, permitindo que eles sirvam a narrativa de uma forma muito mais rica na sua construção, vai criar uma história melhor. Afinal, os nossos factos reais são apenas uma expressão das nossas opiniões, e formas de ser, vivenciadas. A definição de facto não é absoluta nem é vista por todos da mesma maneira. Pelo que temos de escolher os factos que melhor servem o propósito, e a premissa, da nossa narrativa.
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Cuidado com as verdades enunciadas e considera se precisas de autorização para as partilhar
É perigoso recontar uma história e não considerar que as pessoas envolvidas vão perceber que escreves sobre elas. Especial atenção ao habitual uso de aparências pessoais, de histórias facilmente relacionáveis com alguém, tiques pessoais ou outros aspectos que uses para construir as personagens. Mais, como tendemos a querer recontar histórias reais que aconteceram com pessoas muito próximas, família e amigos os mais habituais exemplos, podemos colocar-nos numa alhada bem difícil de gerir.
Ninguém gosta de ser desrespeitado, e ver coisas sobre si espalhadas por aí, de forma caluniosa ou com grande impacto emocional. Sempre que necessário, é preciso pedir autorização à pessoa que vai inspirar uma personagem. E, sempre que necessário (e isto é preciso sensibilidade acrescida) usar outras características que dissimulem a personagem e a descolem da pessoa real. Se contam uma história difícil sobre alguém, pelo menos considerem caracterizá-lo de forma totalmente oposta ao que essa pessoa é na realidade. Poupam dores e processos judiciais… e, agravamento de traumas familiares e pessoais.
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Mudar as características físicas da história
Tal como exposto no ponto anterior, é preciso ter muito cuidado com o aspecto das personagens coincidir com a pessoa real sobre quem desejam contar a sua história. Também os locais onde os factos se passaram podem e, muitas vezes, devem ser mudados. É importante que se construa a narrativa servindo-a. É, por vezes, pura teimosia querer ser fidedigno a factos que até, no extremo da consideração, não existem. O facto real costuma ser uma questão de opinião. E, se o facto real não constrói a ficção como precisamos devemos adaptá-lo.
É preciso manter presente que as características reais da história devem ser avaliadas e escolhidas sob a perspectiva da melhor recontagem ficcional.
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Pesquisar profundamente
Qualquer criação de um texto, ficção ou não-ficção, envolve muita pesquisa. Mesmo que consideremos que um texto ficcional vai ser inspirado numa história real que nos pertence, que vivemos de alguma forma, seria muita arrogância assumir que sabemos tudo sobre todos os factos da história nos diferentes momentos, com diferentes pessoas. Sabemos um lado da história, o nosso e, habitualmente, sabemo-lo mal. Cada um de nós traz os seus julgamentos, preconceitos e ideias sobre o que julga serem os factos.
E, temos aqui uma distinção a fazer: a história é inspirada em factos verídicos e foi vivida por outras pessoas; ou, a história foi vivida na primeira pessoa. Ambas precisam de pesquisa. A primeira situação, pode implicar pesquisa histórica, temporal, de apreciação de facto da época, e de pontos de vista diferentes… A segunda, precisa de pesquisa para construção de personagens, narrativa e locais construídos para a narrativa, pesquisa de outros pontos de vista sobre o assunto, entre outras questões relevantes.
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Editar o que escrevemos com particular atenção ao detalhe
Editar é sempre a tarefa mais importante. Feita bem, é quando o texto passa de um primeiro rascunho para uma história… de preferência, excelente. Editar histórias adaptadas de factos reais significa pesquisar bem os detalhes que usámos; identificar que factos funcionam e aqueles que precisam ser retocados; significa reescrever o que tocámos ao de leve e precisa ser reescrito para consubstanciar a história.
Escrever algo baseado em histórias verdadeiras é um projecto avassalador, mas importante, pois permite-nos revisitar a História, recontar histórias e criar novas histórias. Algo que deve ser feito com muita consciência e consideração pelo outro.
E, tu? Escreves ficção baseada em histórias verdadeiras?
Sentes dificuldade em equilibrar ficção e realidade?
Deixem os vossos comentários em baixo.
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A narrativa que escrevo é uma história real, da amizade vira uma espécie de vantagem pessoal pré meditada. Caracterisa sim um crime de estelionato. A ideia do autor, não criar um sofrimento, mas um constrangimento, por ter laços familiares. Gostei das dicas, mas preciso rever a segurança.