Quantas vezes ouvi “Devias escrever isso. Dava uma boa história!“, quando tenho a infeliz ideia de partilhar coisas que me aconteceram durante estas minhas, relativamente curtas, décadas de vida…
Não o faço. Não de forma pública. Não em não-ficção. Guardo-o para os meus botões, ou diários, como é o caso. Guardo-o para as poucas pessoas em quem confio. Ou, guardo só para mim.
Como diz aquela frase: Não é o que nos acontece. É o que fazemos com aquilo que nos acontece… numa das suas iterações, que andam por aí, atribuídas aos mais diversos autores.
Quando escrevemos, partimos do conhecimento que temos histórias para partilhar. Temos ideias e constatações, e escolhemos o meio, o tom e o formato em que queremos partilhá-las.
Partilhar a história que temos dentro de nós, como escreveu Maya Angelou.
Escrever Não Ficção, sob a forma de memórias ou biografias, são géneros muito distintos de todos os outros. Acredito que é preciso compreender o que compõe cada um dos tipos de escrita, e fazer reflectir esse conhecimento, nesta escolha pessoal.
Há vários motivos para querer contar um história não ficcional. E, há várias formas de o fazer.
A primeira parte, só a vós vos diz respeito. Quanto às formas escritas de o fazer, encontramos as Memórias, as Biografias e as Autobiografias.
Memórias
Vindo da nossa própria memória, são as histórias que desejamos recordar, colocando-as num papel.
Este tipo de escrita é:
- Não-ficcional
- Com foco no material pessoal, e nas próprias memórias, com uma mensagem maior ou mais profunda
- Escrita do ponto de vista pessoal, da própria perspectiva, sobre a ocorrência
- Focar num tópico que poderá se transformar num tema de importância universal
- Escrever com paixão, objectivo e clareza, aceitando as emoções pelo que elas são.
Este tipo de escrita não é:
- Uma história da nossa vida
- Despejar tudo o que pensámos e sentimos sobre uma situação sem considerações éticas
- Não fazer uso de pesquisa profunda sobre os momentos ou circunstâncias
- Uma arma de arremesso contra aqueles que consideramos que nos fizeram mal
- O encerramento definitivo de assuntos do passado
Autobiografias
Uma autobiografia é como contar uma boa história em que a personagem principal é o próprio autor. Os conceitos de personagens, conflitos e múltiplos enredos, ajudam a construir esta história.
Este tipo de escrita é:
- Estruturada pela linha temporal da vida do autor
- Explora conflitos, opções e resoluções tomadas pelo autor.
- Segue os temas que regem a boa ficção como: a infância trágica, o crescimento e as complexidades da entrada na vida adulta, a história de amor, superar a crise de identidade, ou derrotar um grande mal na vida.
- Uma amostra da personalidade e da sinceridade do autor através da forma como conta as suas histórias entrelaçando-as numa só grande história.
- Reveladora da verdade sobre o indivíduo e não apenas as partes positivas, mas também as negativas, os próprios pensamentos e opiniões.
Este tipo de escrita não é:
- Um diário pormenorizado sobre tudo o que nos aconteceu
- Uma quantidade de histórias ao acaso cujo único ponto de ligação é terem acontecido ao mesmo indivíduo
- Uma desculpa para ignorar forma e função deste tipo de textos
- Uma forma de introduzir ficções no material que se quer verdadeiro.
As diferenças entre Memórias e Autobiografia prendem-se com:
- Estrutura. Uma Autobiografia é bastante cronológica na aparição dos diferentes acontecimentos, enquanto que numa Memória os episódios servem o propósito da história geral e não a ocorrência cronológica.
- Dimensão. Uma Autobiografia oferece uma abordagem mais compreensiva dos episódios escolhidos, as Memórias focam experiências específicas.
- Estilo. Uma Autobiografia traz-nos eventos específicos. Memórias dão prioridade à experiência pessoal do autor nesses eventos, como sentimentos, pensamentos e reflexões sobre os eventos.
- Filosofia. Uma Autobiografia dá prioridade aos factos. Memórias dão prioridade às lembranças pessoais e à verdade emocional.
- Leitores. Autobiografias falam-nos de pessoas proeminentes. Memórias falam-nos de temas específicos, mais pessoais e intimistas, com os quais o leitor se pode identificar.
Biografias
Uma Biografia conta a história de um indivíduo. Este pode ser o próprio autor, como um projecto pessoal, ou de outra pessoa qualquer. A Biografia exige muita pesquisa, muito conhecimento objectivo sobre a vida do sujeito e extensa revisão do texto escrito.
Este tipo de escrita é:
- Estruturada pela linha temporal da vida do sujeito
- Exigente porque necessita da autorização expressa e, de preferência, da participação do sujeito no projecto
- Contemplativa dos aspectos legais que envolvem escrever sobre alguém que está vivo, ou caso seja uma obra póstuma, pode ser alguém cuja vida, obra e património poderão estar protegidas por contratos específicos
- Um esforço nos domínios da pesquisa, envolvendo conhecimentos técnicos sobre pesquisa e utilização de diferentes tipos de fontes e entrevistas para recolha de informação
- Contemplativa da situação envolvente do sujeito, integrando conhecimentos históricos, económicos, sociais e político à época
Este tipo de escrita não é:
- Desresponsabilização ou desculpa para pouca, ou pobre, pesquisa
- Não é ficção, ou articulação imaginativa, potenciando falácias sobre o sujeito
- Pouco planeada, deficientemente pesquisada, mal escrita, pouco revista, tendenciosa nas suas mensagens
Como escritores, devemos a nós próprios compreendermos com exactidão o que significa escolher um determinado género literário para contarmos as nossas histórias. Esta necessidade complexifica-se quando falamos nestes tipos de escritos.
Há responsabilidade artística, pessoal e literária associada a cada texto que escrevemos. E, podemos comprová-lo por aquilo que vemos escrito nas redes sociais. Um comentário, um tweet, uma mensagem, um email, um artigo… até ao puro texto ficcional, cada um deles acarreta um impacto que impomos na vida de outrém.
Escrever Memórias, Autobiografias e Biografias, acresce na nossa responsabilidade. Devemos procurar conhecer muito bem as guias destes géneros literários e fazer as nossas escolhas como autores equilibrados e responsáveis.
As consequências pessoais para o próprio, para os que nos rodeiam, e para o próprio objecto do texto, se for o caso, podem ser maiores e mais difíceis do que antecipávamos.
Géneros literários que exigem respeito, cautela e muito empenho pessoal para concretizar de uma forma interessante e construtiva.
Já escreveram nestes géneros? Sobre quem? E, o que trouxeram dessa experiência?
Obrigada e Até Breve!
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Referências:
- “Eat, Pray, Love”, Elizabeth Gilbert, ISBN 9780143038412
- “Churchill”, Sebastian Haffner, ISBN 9781904341079
- “Leonard Cohen – O Eterno Regresso”, Marc Hendrickx, ISBN 9898174116
- “Almost Everything: Notes on Hope”, Anne Lamott, ISBN 9780525537441
- Website Writers.com
- How to write a Biography
- How to write an Autobiography
- How to write a Memoir
Adorei sua exposição. Parabéns!!!!
Obrigada, Vanessa.
Sara