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Ouvi algures, — num vídeo de Alain De Botton, — que as pessoas têm muita dificuldade em lidar com ambiguidade.
Ambiguidade como duplicidade, contradição, dúvida, incerteza, ter mais de um sentido. Ambiguidade é como ter duas ideias, que são contraditórias entre si, mas que existem em simultâneo.
A noção da dificuldade, em lidar com ambiguidade, não é algo desconhecido para mim. Considero que, é algo com que sempre me debati, e no qual continuo a sentir grandes dificuldades, uma vez que acredito que, quando mostramos tendência para um determinado comportamento, por uma determinada forma de pensar, fico crente que, em qualquer outra circunstância, o padrão vai repetir-se. Nunca penso que a ideia oposta pode coexistir em simultâneo.
E, todos padecemos destes actos contraditórios. Não há absolutos, que se fazem sempre da mesma maneira, em qualquer circunstância, porque as nossas contradições determinam as escolhas que fazemos e, quando estamos perante uma escolha, nem sempre queremos o mesmo.
Afastar-me destas contradições, geradas por outros, passou a ser auto-preservação. Já das minhas, claro que não consigo afastar-me, pelo que geram sempre muita confusão.
É impossível impedir a ambiguidade e a inconstância humanas.
Mas, acreditar nas melhores intenções, quando já se viu as piores, uma e outra vez, não combina com as minhas susceptibilidades. Debato-me com os assuntos e, termino sempre, em concordância com a confirmação da qualidade da nossa natureza.
E, estes são temas que revisito com frequência, naquilo que escrevo. O que é muito interessante, não fosse o sofrimento que envolve, e a constante sensação que, se calhar, ´e possível viver melhor se olhar menos para estas nossas circunstâncias. E, no entanto, não pareço ser capaz de abandonar a confusão…
Suponho que, seja desta falta de fé no ser humano, que estamos a padecer de uma forma mais transparente nas sociedades modernas…
‘You’ve Got Mail’
Há umas semanas, apanhei um certo filme a dar na TV, e fiquei a ver… quer dizer, a rever, apesar de já não me lembrar de quase nada sobre ele.
Nota: Prometo que os argumentos que se seguem estão ligados à tentativa de entendimento da Ambiguidade.
Sou da geração TV, como imagino que muitos de vós sejam, e aprendi muito com as histórias (séries, filmes, documentários) que vi/vejo contadas nela, incluindo a estrutura utilizada nos diferentes formatos e géneros. Não costumo falar muito sobre isto mas, o meu interesse por histórias e, por livros que continham histórias que eu queria ver, cresceu com a exposição aos filmes, séries e desenhos animados, que via na TV.
Aviso que vou analisar/estragar a trama deste filme pelo que, se ainda não viram, e querem ver, sem spoilers, podem parar de ler aqui.
Se já viram o filme e, querem rever de novo, também acho uma boa opção reverem primeiro e lerem o resto deste artigo depois. Se nunca viram o filme e não pretendem vê-lo, podem continuar a ler.
‘You’ve Got Mail’, com Meg Ryan e Tom Hanks, de 1998, um par que parece ter tido sucesso como modelo romântico da época, a avaliar pela quantidade de filmes em que contracenaram juntos, numa variação destes papéis.
A história do filme, ‘You’ve Got Mail’, centra-se num casal que começa a trocar mensagens online, numa das aplicações de época, — um cruzamento entre e-mail e whatsapp — e, sob a protecção do anonimato, nessa troca começam a conhecer-se, e a apaixonar-se, sem saberem quem o outro é, o que faz, qual o seu aspecto… basicamente, não sabem nada sobre o outro, excepto aquilo que pensam sobre a vida, de um modo geral.
A ideia de se apaixonarem, sem nunca se terem visto, faz parte da corrente romântica, que defende os amores de verdade e predestinados, de almas gémeas que se encontram no mundo, contra todas as probabilidades.
E, até hoje, suponho que isto nunca me tinha feito confusão. Mas, já não é o caso.
O amor romântico é um tema que tenho visitado, e escrito sobre, uma vez que gosto de analisar certas possibilidades e impossibilidades. E, as diferentes manifestações do sentimento, não apenas o romântico, são território fértil.
Afinal, sei que uma história tem outro tipo de dimensão quando incorporamos o amor, numa das suas iterações como: a necessidade de ser amado, a falta de amor-próprio, ser-se mal-amado, ou os diferentes tipos de amor, como a coragem necessária para enfrentar uma vida como a que temos, quando a esperança pelo afecto dos outros, e a sua importância, no bem-estar do ser-humano.
O amor, seja qual for o seu formato, é um grande tema, de uma complexidade e riqueza sem comparação, sobre o qual todas as grandes histórias assentam.
Por isso, apaixonarem-se online, mesmo se improvável, é possível de ser imaginado. Aliás, hoje em dia, não faltam histórias reais que começaram desta forma.
Até aqui, tudo giro, e tudo bem!
Agora, quando se começa a tentar transpor o romance imaginário, online, para a vida real, a trama tem de se adensar de outras formas. Serem inimigos na vida real e apaixonarem-se (na vida irreal?!) online é um caminho perigoso rumo a um destino incerto. Ou seria…
A personagem de Tom Hanks, faz o esforço de tentar encaixar essas peças que, nunca na vida, encaixariam. Ele é o primeiro a descobrir quem ela é. Se fosse ela, a primeira a descobrir quem era o seu correspondente online, o fim estaria ditado. Ele é o motor de transformação da vida dela. Ela é a transformação na vida dele, mas como mero exemplo representativo do que ele quer, que seria ser feliz. Ele é o fim da vivência familiar, de negócio e, essencialmente, de vida da personagem feminina deste par romântico. Ela não é a dele, apesar de podermos dizer que ela o ajuda a quebrar as tendências familiares. Ele persegue-a online e, mais tarde, fisicamente, na história, mesmo enquanto destrói o seu modo de vida real.
E, para mim, é nesta contradição que está a história.
Ao longo do filme, vemos Tom Hanks a ser alterado pelas circunstâncias, e a apaixonar-se por ela, na vida real. Claro que ela não era feia, o que ajuda sempre a encarreirar os romances. E, ela dava luta, algo essencial, mesmo que desenhem uma personagem feminina mais do género capacho, o que considero ser o caso.
E, no fim, vemo-lo pensar, e executar, uma série de estratégias para exercer a sua influência sobre ela, o objecto do seu desejo.
Na sua essência, ele continua a mentir-lhe e a manipulá-la, para que ela transfira os sentimentos, que teve pela pessoa que “conheceu” online, para ele, e para a realidade física de ambos.
Há ali um momento, antes do culminar da história, em que ele lhe dá a escolher entre ficar com ele, ou ir encontrar-se com o homem misterioso. Ela escolhe a segunda opção.
Ou seja, tendo exercido a sua influência, tendo construído uma relação real fora da circunstância online, ele dá-lhe a hipótese de escolha entre ele e… ele. Ela escolhe o homem mistério.
Ahhh, a essência de qualquer bom filme romântico: o sentimento é sempre maior do que todas as dificuldades e desrespeitar é aceitável. Mas, tem de existir algo muito mau, para que o arco da história ganhe significado. Tem de existir algo para perdoar… por amor.
No decorrer da história, a personagem de Meg Ryan perde a livraria, que fora da sua mãe, perde todas aquelas pessoas-amigos que haviam frequentado o espaço desde que a sua mãe era viva, perdendo assim o sítio onde as suas raízes se formaram, perde o emprego, o namorado (cuja separação se transformara em algo meio cómico, para não ficar mal) e, se fosse na vida real, a viver em Nova Iorque, teria perdido a casa, e teria de ir trabalhar para uma loja qualquer, se calhar a dele (Tom Hanks) para poder sobreviver, sozinha, e sem nada daquilo pelo que havia trabalhado a vida toda.
Aliás, ela parece inerte, pouco disposta a dar a volta à situação e, até, complacente perante o que lhe acontece. A pouca luta que dá, parece vazia, e desprovida de real empenho. Pede ao namorado para escrever sobre a livraria, e dá uma conferência, incitando ao protesto público… dos outros, pela sua livraria e, ao longo do filme, mostra-se mais melancólica do que zangada com a situação.
Ela desejava mudar de vida, mas não tinha coragem para o fazer sozinha? Queria deixar de ser livreira? Tinha outros sonhos? Estas ideias, ou outras, não passam para nós, no filme. Ela não parece aspirar por algo mais, ela acaba por encontrar uma realidade por acaso, em que nos informam, através de duas conversas paralelas, que “ela teria jeito para“.
Entretanto, a personagem masculina deste par romântico (Tom Hanks), cuja fortuna familiar é feita de abrir super-livrarias, grandes espaços comerciais que são o futuro (atenção que este filme é de 1998), e que empurram as pequenas lojas para o esquecimento histórico, acaba por descobrir que, as suas escolhas de vida, — tem uma namorada tão impiedosa como ele, um pai e um avô, tão moralmente mal formados que, continuam a insistir em viver a vida como se as mulheres e os filhos fossem acontecimentos que desaparecem em meses, e tocar a vida de todos os que o rodeiam com o cinismo próprio deste cliché emocional, — têm fins pouco satisfatórios, encontrando um novo desafio, na conquista da personagem feminina (Meg Ryan).
Ora, na vida real, isto tudo iria correr muito mal.
A começar pela difícil redenção da personagem de Hanks em qualquer dimensão da sua vida… que , mais depressa atiraria dinheiro para cima de Ryan, do que descobriria o sentimento de amor romântico, numas trocas de palavras online.
O que nos é ensinado, vem sempre ao de cima e, ele mostra-o ao perseguir o que quer, mas não parece ter feito nenhum trabalho interior para melhorar quem é, e ser merecedor de um final mais feliz. Mostrando sempre que tem o poder de destruir a vida de alguém, através da sua complacência, e levando a sua vida normal sem grandes conflitos emocionais. Aliás, pergunto-me o que seriam os seus monólogos interiores, na dicotomia entre “vou destruir tudo aquilo que ela tem” e “vou conquistá-la porque gosto dela“.
Sou só eu?! Ou esta parece uma conversa parva?! Porque, quem ama, protege… inventa, procura soluções, apoia de formas inesperadas, e sem egos à mistura. Ou tenta, pelo menos…
É um filme, mas a consistência de uma boa história precisa partir de premissas válidas. Mostrem-me que a redenção é possível. Mostrem-me que são dignos de redenção. Ele e ela. Porque ela também tem muito do que se redimir (se bem que, ser capacho, é capaz de estar para lá da capacidade de redenção).
E, no final vemos, como seria de esperar, uma mulher que capitula em todas as suas convicções e, até deseja, que seja ele, o seu correspondente (amoroso) online.
E, ele, tem a hipótese de corrigir os seus erros? Não. Ele tem hipótese de viver uma história de amor com um “final feliz”. E, vivem os dois, — três, se contarmos com o cão, — felizes para sempre.
Um arco redentor… esquisito, para ambas as partes.
Arquitectar uma história, considerando a dicotomia que todos os seres humanos vivem, em estado permanente, é trabalho árduo. E, não apenas porque, conhecer os meandros do amor romântico, do amor parental, do amor-amizade, e de todos os outros tipos e espécies, requer experiência. Mas, também, porque requer análise e auto-análise.
Não me digas que se apaixonaram. Mostra-me que se apaixonaram.
E, isto requer tentar compreender as inconstâncias, e inconsistências dos seres humanos, e as diferenças entre nós.
Como escritores, construtores criativos, é este o nosso trabalho: analisar, compreender e mostrar. Aquilo que escrevemos será melhor por isso.
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