“Às vezes, uma refeição é apenas uma refeição e partilhá-la não tem qualquer outro significado. Contudo, muitas vezes, não é apenas uma refeição (…) o acto de comer ou beber acompanhado significa comunhão (…)
Quando falamos em comunhão há que lembrar: repartir o pão, no mundo real, é um acto de partilha e de paz. Enquanto partem pão, não estão a partir cabeças. Habitualmente convidam amigos para jantar, a menos que estejam a tentar cair nas boas graças de inimigos ou chefes. Somos bastante peculiares ao escolhermos alguém com quem dividir o pão (…) O acto de ingerir comida, aceitá-la no nosso corpo, é tão pessoal que apenas desejamos fazê-lo com pessoas com quem nos sentimos confortáveis (…) Partilhar a nossa mesa com alguém é uma forma de dizer ‘Estou contigo, gosto de ti, juntos formamos uma comunidade.’ E isso é um acto de comunhão.
Verifica-se o mesmo em literatura. Mas na literatura há outro motivo: escrever uma cena sobre uma refeição é tão difícil e desinteressante que tem mesmo de existir uma razão forte para a incluir na história. Essa razão prende-se com demonstrar as relações entre as personagens (…) Comida é comida. O que podemos dizer sobre frango frito, que não tenha já sido dito, e que seja interessante? (…) Colocar as personagens numa situação tão mundana, demasiado utilizada e aborrecida, significa que algo acontece nas entrelinhas, algo mais do que a simples ingestão de comida.”
Este é um excerto de ‘How to Read Literature Like a Professor’ de Thomas C. Foster, um texto que se propõem a esclarecer como ler nas entrelinhas de uma cena. Achei apropriado relembrar a relevância desta obra, não só para apreciadores de literatura, mas sobretudo para escritores.
Este pedaço de texto é uma tradução livre dum tema que tem sido recorrente, por aqui, nos últimos dias. Entre o rascunho de livro que elaborei no mês passado (NaNoWriMo), a época natalícia que se aproxima, e consequentes actos de comunhão através da comida, fui perseguida pela importância e significância destas cenas. E se é importante deve ser partilhado.
Uma cena que envolve o acto de comer ou beber é uma demonstração de algo. Cada acto de comunhão tem (ou deveria ter) um sub-texto que o acompanha. As acções e reacções de cada personagem, a forma de consumo de comida, os acontecimentos que antecedem ou precedem o acto, a solidão ou a partilha, as metáforas usadas, o explícito e o implícito constroem uma cena e ajudam a dimensionar as personagens.
Partir um pão pode significar inúmeras coisas, ou pode ser apenas o que é. Usar esse acto de partir o pão, consciente da significância que ele produz na obra, eleva a escrita a outras dimensões.
Engolir algo com dificuldade, dividir um pedaço de comida com um esfomeado, entornar bebida no colo de alguém, perder o apetite, devorar um pedaço de chocolate, beber com avidez, sair da mesa a meio da refeição, entre tantas outras possibilidades, deve ter um significado mais profundo, ajudar a contar a história, mostrar quem são as personagens, e o que elas pensam e sentem. Como escrevi, anteriormente, são as acções (e inacções) das personagens que revelam o seu carácter.
O resto do capítulo fornece alguns exemplos concretos, retirados de diversas obras literárias, aprofundando um tema que merece um olhar mais profundo. Sugiro este livro como ‘Recurso do Escritor’, um dos muitos que nos ajudam a ter uma visão mais completa e profunda sobre aquilo que queremos escrever. [E o capítulo seguinte fala dos malfadados vampiros (e fantasmas) e das significâncias mais comuns, e profundas, dessas criaturas sobrenaturais.]
PS: Estou a dever-vos uma crítica como deve ser deste livro. Como ainda me encontro na fase de degustação da obra é provável que demore um bocado… Mas não está esquecido. (28 Fev. 2014 – link para Opinião aqui…)
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