Opinião: ‘Todo o anjo é terrível’ de Susanna Tamaro

todo o anjo é terrívelTambém os livros e as suas mensagens, de forma fortuita ou predestinada, nos encontram.

‘Todo o anjo é terrível’ deu comigo num sítio com pouco charme e muito barulho de coisas que se mexem sem propósito: o supermercado. Fê-lo num daqueles dias em que não ia ser capaz de suportar uma longa espera, numa das filas, pela inquietude da qual a mente padecia. No burburinho, e em meia hora, absorvi cerca de cinquenta páginas.

Com uma experiência anterior avassaladora, com ‘Vai aonde te leva o coração’, bastou passar os olhos pela primeira página e soube que aquele viria comigo para casa.

A primeira frase que escrevi sobre ‘Vai aonde te leva o coração’: “Foi com um arrepio que li a última frase deste livro de Susanna Tamaro.”. Agora sei onde nasceu essa última frase, assim como muitas outras. Esta é uma obra autobiográfica que reúne tanto da vida, como da forma como esta escritora é capaz de nos tocar, com a força das suas circunstâncias e a realidade a que sobreviveu e que recria em cada uma das suas obras.

A sua escrita tem algo com o qual me identifico, por circunstância e similaridade. O esforço constante em tentar compreender as suas idiossincrasias pessoais, que a assolaram desde a infância, até à descoberta do seu caminho pessoal e à sua capacidade de perdoar e de crescer…

“… a menina-icebergue tinha desaparecido e o seu lugar fora tomado, temporariamente, por uma menina-tapete de quarto. Estava ali imóvel, pequena, discreta, quase não respirava – uma espécie de solha estendida no chão, esperando apenas ser pisada.”

 Sobre a sua vida familiar, a ausência emocional dos seus pais, o abandono, a pobreza e as relações nas quais se viu enredada sem poder escolher. Toda a sua história é o material com o qual constrói os seus livros: a incessante busca pela verdade, pelas regras que sustentam o mundo natural, pelos seres que o povoam.

«Conhece-te a ti mesmo.» É preciso ser desapiedadamente cruel para obedecer a este imperativo.”

Sobre os eventos que mudaram a sua vida, e as crenças que a acompanham até hoje, Susanna Tamaro tem o poder de cativar o leitor com imagens da vida real, dura, implacável, que nos atropela sem compunção ou piedade.

“O que restava dos últimos anos da minha vida era apenas destroços. Destroços metafóricos e destroços reais. Não tenho dúvidas de que, se tivesse permanecido ali, teria tido apenas dois caminhos para percorrer: o das drogas e o do álcool – as realidades substitutas mais facilmente acessíveis a quem vive devastado pelo vazio.”

A amizade, o amor, o vazio, a dor, a incompreensão e aquilo que, por fim, a levou a perseguir uma vontade de contar histórias. Nas suas palavras conhecemos alguns dos motivos que a levam a escrever, e vislumbramos alguns dos nossos.

“Todos os livros que escrevi são uma viagem profunda ao coração do homem – o continente mais complexo, ignoto e fascinante que nos é dado a explorar.

Todos os meus livros atravessam a escuridão, não pelo prazer de o fazer, mas para descobrir o ponto em que, de repente, o escuro pode transformar-se misteriosamente em luz.

Todos os meus livros exploram os territórios da inquietação e da perplexidade porque, só no momento em que sabemos não ter um caminho, é que começamos realmente a procurar um. Só no momento em que aceitamos a inquietação como dado fundamental, entramos verdadeiramente na humanidade.”

Como todas as obras autobiográficas, deixa-nos pistas para “os porquês” de Tamaro. Deixa-nos, também, um sentimento de que são as circunstâncias terríveis que nos moldam, e as felizes que nos formatam. Que é o balanço entre as duas, assim como a capacidade de resiliência com que nascemos, que define a vida e o que escolhemos fazer com ela.

“Há muitas maneiras de reagir a uma experiência forte: podemos revoltar-nos ou podemos fugir-lhe, riscando-a, tal como podemos também, talvez com o tempo, tornar a elaborá-la, esperando que esse trabalho de análise nos conduza, num dia mais ou menos longínquo, a metabolizar o sucedido até conseguirmos diluir aquela dor surda que oprimiu os nossos dias; podemos enfrentar as coisas negativas que nos acontecem, questionando-as, procurando compreender a questão que nos levantam, ou podemos viver na sombra dessas memórias, como arcos de triunfo suspensos por cima de nós, fazendo-as girar em volta de toda a nossa existência.”

Este livro deixou-me, também, a vontade de reler ‘Vai aonde te leva o coração’ e de procurar algumas das outras histórias da autora.

Termino com uma citação (e este livro é profícuo nestas pequenas/grandes pérolas) que acredito traduzir a essência da amizade verdadeira, escassa nos tempos que correm, mas tão valiosa como só quem tem a saberá apreciar… houvesse mais.

“Que sórdida tolice pensar que os laços ditados pelo sangue são os mais importantes! Que prisão medíocre considerar o sexo aquilo que liga verdadeiramente as pessoas! É na amizade que o ser humano conhece a forma mais imprevisivelmente elevada de relação.” Susanna Tamaro ‘Todo o anjo é terrível’

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11 comentários em “Opinião: ‘Todo o anjo é terrível’ de Susanna Tamaro”

  1. Acabei hoje de ler o livro em questao. Apeteceu_me procurar uma opiniao,para ver se coincidia com a minha,pois sou leitora devota de Susanna Tamaro,e uma vez mais terminei este livro com as lagrimas a correr. Nao podia ter encontrado melhor,minha amiga. Teve o dom de transmitir numa sinopse com extratos do proprio texto,que documentam tao lucidamente as suas afirmacoes,, que tenho de lhe dar os meus parabens!
    Subscrevo as suas palavras.Possuo todas as obras da autora, mas como ela diz no livro Sao menos mercantis, embora nao menos ricas em palavras e opinioes. Alguns dos livros sao entrevistas intessantissimas.
    Ps: Desculpe a falha de acentuacao e cedilhas. Estou a escrever num computador adquirido nos States, onde me encontro,dai as falhas..
    Como os amigos sao o melhor do mundo espero que aceite a minha amizade

    Maria Alice Valadas

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