Desde miúda que oiço de forma repetida, e algo repetitiva, o seguinte: há sempre uma factura para pagar, quer queiramos ou não.
Ou seja, em associação ao que acontecia naquela altura a ideia era: se comer muitos doces vou ficar doente. Essa era a factura: a doença. O sofrimento de estar doente seria o preço a pagar, por não ter tido cuidado.
Há uns anos atrás (há mais de uma década) essa factura apareceu para ser saldada… e eu paguei-a. Felizmente, ao comprometer-me de facto com o tratamento fui capaz de reverter a doença e, de certa forma, curá-la. Claro que nuncá terá uma cura se os hábitos antigos regressarem.
Aquilo que me era dito com frequência aplica-se hoje tanto como se aplicava na altura.
Estragamos o que somos. A saúde. A nossa forma de Estar e Ser. Os mecanismos de defesa que tínhamos. O corpo e a mente. Estragamos umas coisas e compomos outras. Mas depois acontece perguntarmo-nos como chegámos ali.
Perguntamo-nos porque nos esquecemos de tudo com tanta facilidade? Porque já não conseguimos memorizar coisas realmente importantes? Porque algo muda e não conseguimos recuperar o que perdemos pelo caminho? Porque nos cansamos com maior facilidade?
Há quem lhe chame maturidade. É preciso crescer, apanhar pancadas da vida, amadurecer… ou criar uma capa dura como o tempo, cínica como o gelo e persistente como vento. É verdade que ganhamos (ou será que perdemos?) isso tudo. Mas o que se apaga em nós é muito mais grave do que qualquer que seja o mecanismo de defesa conquistado.
Perdemos o rasto às coisas. Notamos que, com a passagem do tempo, perdemos capacidades, envelhecemos, sofremos um desgaste acelerado por aquilo que fizemos, por aquilo que deixámos que nos fizessem. A cada dia notamos que há raciocínios que deixam de ser imediatos. Que nos esquecemos de coisas que deviam ser importantes a uma velocidade assustadora. Que existem sorrisos difíceis de apagar do rosto… especialmente aqueles que não são verdadeiros. Que há uma barreira cada vez mais sólida à nossa volta que não será transposta por ninguém. Que há coisas que se esvaem da nossa mente, sem que possamos antecipar ou remediar.
Há sempre um preço a pagar. E recebemos sempre a factura. Com juros… Impostos… E contribuição extraordinária de (falta de) solidariedade. Mas, na hora em que recebemos esse famigerado papel: quando notamos tudo aquilo que éramos e que já não conseguimos ser. E tudo aquilo que somos e que não trocaríamos por nada (mesmo que o preço seja um muro alto em redor), nada há a fazer para recuperar o tempo perdido, as capacidades desgastadas, a saúde erodida.
Podemos apenas olhar em frente. Aceitar as nossas fraquezas. Gerir a melhor forma possível de evitar os erros crassos. Persistir, mesmo se, tendo a consciência que perdemos uma parte de nós pelo caminho.
Envelhecemos. Perdemos partes. Ganhamos significados. Arranhamos para não deixarmos que nos voltem a arranhar. E, acima de tudo, fingimos que nada perdemos pelo caminho. Fingimos que continuamos inteiros. Conscientes e certos das nossas escolhas. Tolerantes aos nossos falhanços. Fingimos que somos aquilo que nunca fomos e continuamos a pagar as facturas que se apresentam para pagar. Sem desconto, prestação ou perdão.
A isto chamam amadurecer. Eu chamo-lhe apodrecer. Daqui a uns anos chamar-lhe-ei outra coisa, tão distante desta perspectiva que tenho, adequada à passagem do tempo e à acumulação de dívida do entretanto.
Fingimos que amamos aquilo que somos quando, na realidade, não conseguimos ser de outra forma. Se pudéssemos mudar… se pudéssemos só tentar por umas horas, muito daquilo que abominamos (porque tememos), transformar-se-ia em nada. Porque é nisso que as coisas que detestamos em nós se transformam, quando as digladiamos e vencemos. Com o tempo, transformam-se em nada. Em cenas ridículas de vida condicionada por nadas.
Se pudéssemos, por instantes mudar aquilo que somos, a forma como o vemos, deixávamos de tentar amar a nossa imperfeição. Porque é isso que somos: imperfeitos. É por isso que lutamos: pela dignificação do amor-próprio. É contra nós que esbarramos. Os outros só personificam aquilo que secretamente acreditamos ser.
Se aceitarmos que pagamos por aquilo que usamos, gostos à parte, então é certo que não interessa se erramos muito ou pouco, se nos amamos muito ou pouco, se perdemos muitas ou poucas partes de nós. No fim, há sempre uma factura a ser paga. E contas a ajustar connosco… e com o Universo.
Artigos Relacionados:
Passem 2015 com os meus devaneios literários (e afins). Subscrevam este blogue e recebam todas as novidades por e-mail.
Segue-me / Follow me:
Sara,
Reconheço-me no teu sofrimento, nesta dor imensa que de alguma forma todos sentimos e partilhamos, embora muitos de nós, iludidos pelo falso brilho da matéria e do seu pequeno eu, prefiram viver à superfície para não ter de enfrentar esta realidade tão obscura e dolorosa em que estamos aprisionados.
O muro que construímos à nossa volta, torna-nos ainda mais solitários no fundo deste poço mental em que o nosso ser caiu, massacrados até mais não por tendências e traços negativos de uma personalidade ilusória que pensamos ser. Este é o grande drama do nosso Ser e da nossa existência neste mundo.
A libertação não é fácil, mas é possível, alguns seres que passaram por este mundo demonstraram-no.
“Nada do que é real se perde, nada do que é irreal existe,
nisto consiste a paz do Ser”
Que a paz esteja contigo…
Olá, Rogério. Obrigada pelas tuas palavras 😉