“… os grandes artistas são aqueles que impõem à humanidade a sua ilusão particular.” (Pág. 47)
Seja qual for o conceito, é sempre o inverso que se aplica. Acreditem, vão deparar-se com muitos preconceitos, ideias pré-formadas e pouco, ou nada, fundamentadas. Irão ler sobre o conhecimento socialmente aceite e amplamente divulgado. E, por fim, constatar que é tudo uma questão de aprender o que existe e criar o nosso próprio percurso.
‘Quem disser o contrário é porque tem razão’ de Mário de Carvalho destaca-se por incentivar quem o lê a aprender o que existe mas, impele-nos a procurar a excelência nesse conhecimento para podermos tomar as nossas decisões como executantes desta arte que é a escrita.
Ora, este é mais um menino para a lista dos Recursos do Escritor. Mais um volume para a pilha (deveria ser prateleira mas, por estes dias, são pilhas…) dos manuais de escrita aos quais voltar de tempos a tempos. Mais uma ferramenta para a mente que se pretende que seja um guia na exploração de novos horizontes literários.
“A arte não transmite um conhecimento. Faz nascer um conhecimento. A literatura não nos comunica os sítios. Fá-los recriar no espírito do leitor.” (Pág.207)
Para além da montanha de referências bibliográficas que retirei, tive a oportunidade de ler o que alguém, tão português como eu, pensa daquilo que se crê (e divulga) como sabedoria literária anglo-saxónica… algo escasso (por ser politicamente incorrecto?) nos manuais da especialidade.
“A vida literária artística não anda longe da vida propriamente dita. Está cheia de acasos e partes gagas.” (Pág.146)
Não obstante, este é um livro que serviu o meu intento de reunir mais conhecimentos sobre a arte. Há alguns anos que enfiei na moleirinha estudar a arte e reunir todo o tipo de recursos que pudessem ajudar um jovem escritor a aperfeiçoar-se. Assim, surgiu a rúbrica Recursos do Escritor.
Com meios modestos, verba parca e tempo escasso, tenho procurado identificar algumas obras (mas não só) que contribuam para esta empreitada. Foi assim com ‘Writing Fiction for Dummies’, ‘How to read Literature like a Professor’, ‘Bird by Bird’ ou ‘A Fé de um Escritor’, entre outros.
Agora, é a vez de ‘Quem disser o contrário é porque tem razão’.
“Este livro não é um trabalho académico. (…) O livro em nada acrescenta a ciência dos estudiosos da área. O tom coloquial, mesmo familiar, é disso sinal. Mas admito que possa fazer alguma falta aos que não forem especialistas nela.” (em Nota Prévia pág. 11-12)
Bom, primeiro acho que os maiores elogios a esta obra, se fosse caso disso, seria a aprovação dos ditos estudiosos da área. Mas isto é um problema muito português, começamos por nos desculpar logo à partida por aquilo que não somos ou não conseguimos produzir. A ironia (muito ou pouco) subtil é tão característica do nosso povo, mais que habituados a sermos criticados por falta de erudição mas, sempre, ignorado-abandonados quando fazemos uso dela.
Não sei se terá sido a intenção, consciente ou inconsciente, mas soa a justificações. Na minha opinião, aqueles que não são especialistas são os que mais precisam do incentivo, da obra transformadora de percepções, da ajuda extra para compreender.
Enfim… de volta à obra. Na sua abordagem directa dos temas literários, Mário de Carvalho reúne bastantes pontos a considerar pelo jovem escritor.
“… todas as afirmações são para tomar cum grano salis (com um grãozinho de sal) (…) Pratique-se a dúvida sistemática. Se o exercício da dúvida produz maus anúncios, pode, em contrapartida, gerar melhores escritores.” (Pág.16)
Nós, que encaramos a arte com seriedade, ‘dúvida sistemática’ é o que mais temos. Duvidamos de tudo, de todos e de nós próprios. Por isso não escrevemos, não divulgamos o que escrevemos, não lutamos por aquilo que produzimos, não reclamamos o nosso espaço por direito e, chegamos a preferir doá-lo aos críticos de algibeira e aos confortavelmente estabelecidos. As luzes incidem sobre quem se coloca debaixo delas.
“Sobre a literatura abunda a frase feita. (…) Depois do futebol é, provavelmente, a arte mais bem fornecida de peritos.” (Pág.33)
Tal como afirma o autor, não há uma receita criativa infalível. Algo que nos torne num excelente escritor (ou sequer mediano) de forma automática.
“Pensar que se fica apto a escrever depois de ler um compêndio de escrita criativa é o mesmo que julgar se passa a dominar uma língua após ter comprado um dicionário.” (Pág.18)
Não há um diploma, um consentimento social, uma verificação absoluta que determine alguém apto a escrever. Há, sim, muito trabalho, abundante leitura e excesso de prática. De preferência, com bastante prazer em todas elas.
“Leia muito, leia por gosto, leia por curiosidade, leia por desfastio, leia por obrigação, leia por indignação, mas leia, leia, leia de tudo, sem preconceitos nem reservas.” (P.28) (…) “Dificilmente conseguirá ser inovador e original quem não considerar os outros. (…) É aconselhável munir-se de um razoável número de textos, quadros, filmes, que lhe permitem exercitar a sua imaginação, responder-lhe e dar-lhe espaço para o confronto.” (Pág.29)
Desta forma afável e descomplicada, o autor passa pelos vários temas base que constroem um manual de escrita: a inspiração, a prática, as personagens, a histórias, as cenas, o diálogo, o bloqueio de escritor, o título, a primeira frase, o leitor, entre outros. Permeando com alguns exemplos retirados de obras, mais e menos clássicas, e as ideias que lhe estão associadas.
“Alguns grandes temas, o amor, o poder, a morte, a ambição, a liberdade, vêm assombrando a literatura desde o fundo dos tempos e continuarão a assombrar, porque estão ligados àquilo que habitualmente se designa por “condição humana”. (Pág.99)
Insistindo que não há regras inquebráveis (mas que é preciso sabê-las primeiro), não existem fórmulas mágicas ou absolutas, não há imposições que não sejam as nossas próprias, Mário de Carvalho toca pontos válidos ao percorrer a miríade de assuntos que são partes o mundo da escrita e do escritor.
“Sucedem-se também as modas, porque o espírito do tempo deixa marca em todas as obras humanas.” (Pág.86)
Defende a importância do jovem autor percorrer o seu caminho, atentar nas suas coisas (pequenas ou grandes) e de escolher o próprio espólio de cultura e pesquisa.
“O perigo destes conceitos aparentemente simples e elementares é acabarem por ser um espartilho da escrita. Já nos bastam os orientadores (…) que impõem aos seus alunos a ansiedade dos plot points e manias classificativas. Rege o princípio precioso da autonomia e soberania do escritor. Conhecer, ter ao dispor, mas não se sentir obrigado a usar.” (Pág. 133)
No caminho por entre estas páginas, entregam-nos alguns excertos de grandes obras, e respectiva análise bem acessível a qualquer leitor. Excertos sempre orientados para o tema em questão (que isto não é estudo da Literatura). Aconselham-nos algumas obras indispensáveis na nossa biblioteca pessoal, para a pilha da consulta frequente e, proporcionam-nos um belos momentos de leitura e inspiração para desenvolvermos algumas ideias novas.
“Faz o que quiseres. Assim remato eu este livro, leitor amigo, escritor em potência (…) a ser o último juiz daquilo que escreve e a tomar as suas decisões de acordo com o seu critério pessoal e único.” (Pág.276)
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