Um dos motivos para perder a vontade de escrever é ter demasiadas noções do que era suposto estarmos a escrever.
Aquela sensação de isto é péssimo porque “estou a misturar pontos de vista das personagens” ou “devia descrever mais” ou “estou a mostrar o suficiente?”
Perder a motivação para escrever é fácil. Tão fácil que procuramos musas, inspirações, defeitos, perseguições de objectivos, com um fervor transcendente… apenas para constatar que a vontade de pôr algo na página desapareceu.
Acontece por vários motivos e, comigo, acontece quando me sinto assim:
Por vezes, estudar a arte da escrita ajuda a descomplicar estas emoções. Por vezes complica…
Há cerca de um ano comecei a ler “Revision & Self-Editing” de James Scott Bell. O marcador encontra-se na página 74, mas há uns dias atr´ás, decidi voltar ao início e tirar notas específicas.
Logo na introdução fui confrontada com esta mesma ideia ilustrada aqui em cima.
Como os efeitos do que estudamos impactam o acto da escrita.
Ao desenhar, posso ver uma técnica e tentar reproduzi-la. Posso experimentar o traço corrido, ou o pontilhado, ou qualquer outra forma de colocar no papel o efeito que quero desenhar. Se não consigo, apago e volto a tentar. É para isso que serve a minha Rotring B20 ou uma folha nova.
Quando escrevo, e entro em modo flow, coloco no papel o que quero colocar, e não consigo aperfeiçoar “o traço”, a técnica, no momento. Fica apenas a sensação de que não está como quero, e a promessa de que voltarei ali, para corrigir o que não acredito estar lá muito bem escrito.
Bell encontra um paralelismo com a época em que decidiu aprender a jogar golfe. Encheu a cabeça de teorias, leu os livros e as revistas, de tal forma que, quando ia jogar, não pensava em nada mais do que aplicar as técnicas, e quão mal jogava porque era incapaz de as usar enquanto praticava.
Reconheço este sentimento.
Estar consumida porque preciso recordar esta, ou aquela, regra. Porque preciso fazer isto, ou aquilo, naquele ponto da história. E, a quantidade de coisas que sei que desconheço… ao fim de um bocado, tudo me soa a uma valente porcaria.
Perco a motivação porque perco a noção do sítio para onde quero levar a história, e das milhares de pequenas reconsiderações que terei de fazer, porque sei que tenho de as fazer, não importa o que esteja na página.
A verdade é que, seja o produto final uma porcaria, ou não, precisamos aprender as técnicas. Mas, acima de tudo, precisamos de agir em suficiência que nos permita registar a primeira “porcaria” para podermos começar a construir a partir daí.
Como diz Anne Lamott (e podem ler a minha opinião sobre este livro aqui…): escreve primeiros rascunhos da porcaria…
Ou seja, enquanto nos encontramos imersos naquela teoria toda que não nos deixa respirar, esquecemo-nos de confiar em nós próprios, e a nossa capacidade de utilizar aquilo que aprendemos assim como se meio por osmose.
Bell constata, e eu revejo-me na constatação, que se executarmos a actividade, seja ela escrever ou golfe, com interesse e vontade, com feeling, (o termo que ele usa), os conhecimentos passam a fazer parte de nós e das nossas estruturas de raciocínio normal.
Usamos os conhecimentos que assimilámos, sem pensar neles, porque já fazem parte de quem nós somos, e podemos fazer o nosso melhor, e divertirmo-nos durante o processo.
Não há falta de recursos aos quais recorrer quando procuramos aprender sobre a arte da escrita.
Também é de domínio comum que uma arte, com vista a atingir um qualquer nível de mestria decente, leva uma quantidade avultada de horas de prática. Estimaram-se 10 000 horas, mencionadas em vários livros e websites dedicados ao assunto.
Mas se nos perdermos nos caminhos tortuosos da aprendizagem da técnica, não nos libertamos dos preconceitos, pelo tempo suficiente que é necessário, para escrever qualquer coisa e… torna-se uma chatice pegada.
Em simultâneo, precisamos gostar o suficiente da actividade que estamos a praticar para que o nosso ser entre em flow. Sem flow também não se atinge satisfação ou mestria.
A estratégia é, quando estamos a escrever, deixarmos a escrita fluir sem preconceitos. E, quando estamos a estudar as técnicas, aprender tudo o que conseguirmos, procurando compreender de forma tão plena, que o conhecimento passe a fazer parte das nossas estruturas mentais, sem grande esforço.
Sentir-mo-nos aconchegados pela ideia que, é para colmatar as falhas e aproximar o acto da escrita da aplicação das técnicas aprendidas que o processo da revisão serve.
Rever, editar, reescrever, reordenar, são actos tão importantes como escrever um primeiro rascunho. São estes processos que nos permitem tornar a nossa escrita melhor, e aperfeiçoá-la de acordo com as técnicas que estudámos.
Bell termina a parte introdutória da introdução, antes de passar às minúcias de como podemos estudar a arte da escrita ficcional, com a seguinte ideia:
Se nos chamamos de escritores, e não apenas pessoas que querem escrever livros, somos pessoas que pertencem a esta arte, pelo que devemos pagar as nossas quotas ao clube.
Separar o tempo que usamos para o acto da escrita, daquele que usamos para aprender a escrever, ajuda a executar sem duvidar.
Assim como, aproximar-nos do acto de revisão, e das técnicas que permitem aperfeiçoar a nossa escrita, ajuda a consubstanciar a nossa escrita.
Quando lemos um bom livro sabemos, instintivamente, se o é. É um bom livro quando nos agrada, e se nos encontramos no espaço mental certo para acolher as suas mensagens. Costumo dizer que os livros me encontram nas alturas certas, ou voltam para a prateleira, à espera que esse momento chegue.
Acontece-nos o mesmo com os livros que escrevemos. Cabe-nos a nós sentir se é o livro certo, se pode ser um bom livro, e praticar o suficiente para que o seja.
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Referências:
- “Revision & Self-Editing”, James Scott Bell (ISBN 9781582975085)
- “Bird By Bird”, Anne Lamott (ISBN 9780385480017)
- Artigo “10,000 Hours to Mastery: The Gladwell Effect on Learning Design‘
- “Drive, The Surprising Truth about What Motivates Us”, Daniel H. Pink (ISBN 1594488843)
- “Flow”, Mihaly Csikszentmihalyi (ISBN 0060920432)
Seu artigo toca um ponto nevrálgico no ofício da escrita e decifra bem a questāo. Penso na velha máxima: duas são as coisas importantes para um escritor: ler e escrever. Obrigado pela reflexão. Muito bom.
Só gostaria de ver exemplos de escrita!!
Como fazer para entender desde os começo!