Nota: Se gostaram desta versão da Netflix de ‘Persuasão’, não leiam até ao fim. A probabilidade de ficarem ofendidos é grande!
Quem disse que os gostos não mudam? Estariam certos nessa apreciação?
E, quem disse que a forma como vemos algo se mantém intacta no tempo? Crescemos, amadurecemos e, de repente, começamos a ver os assuntos de outras formas?
Eu sei que a minha primeira leitura de ‘Percepção’ formou-se de pérolas a porcos. Ou, a esta, em exclusivo.
Leio o que escrevi como opinião, que podem ler neste artigo aqui… e, apesar de parecer providencial (ahh! uma referência a Mr. Elliot no filme de 2007) a descoberta deste livro num alfarrabista, numa primeira visita a Londres, vejo agora tudo o que não compreendi à época.
Faz sentido?! Passo a explicar…
Perdi a conta ao número de vezes que li ‘Persuasão’… em Inglês, em Português, em audiobook, em versões da história através de filmes. A cada volta, desvendava características que me pareciam colocar maior profundidade emocional nas personagens, outras circunstâncias que aludiam a dificuldades impeditivas de conquistar as próprias características, ou de reconhecer nos outros as verdadeiras motivações que incentivavam aos seus comportamentos.
Relembrar as diferentes perspectivas sobre uma mesma história ajudou-me a conhecer o verdadeiro carácter das personagens, os seus desejos e motivações intrínsecas e, quantos deles cresceram no decorrer, e recontar, desta história.
Há tanta coisa para observar e relacionar que, apenas com o cruzamento de opiniões de outros, leitores, produtores, guionistas, estudiosos… é que me atrevo a dizer que consigo apreciar com maior entendimento as características desta história.
Do que falamos quando falamos de ‘Persuasão’?
Porque não falamos apenas de amor romântico. Falamos na descrença que nos desvia dele.
Não falamos apenas de uma criança (aos 19 anos!) que se deixa persuadir e que termina arrependida por não ter seguido o seu coração. Falamos da obrigação para com aquilo que considera ser moralmente correcto.
Não falamos de ego ferido, ou despeito, por ser recusado. Falamos de um orgulho tão profundo, de uma imaturidade, e da separação do objecto dos seus afectos, que o leva a provocar a situação em que se encontra.
Não falamos de amores frustrados, mas da deficiência em reconhecer as verdadeiras circunstâncias dos factos. E, de agir para as alterar.
Tudo isto, e só falei das duas personagens principais.
Para todos os outros, existem curvas de aprendizagem, mais ou menos visíveis na história, que nos possibilitam vislumbres do que a mente humana é capaz de engendrar.
E, mesmo quando releio a opinião que escrevi, há quase um ano atrás, sinto que não vi a míriade de relações que compreendo agora… e, daqui a um ano, suponho que direi o mesmo.
Esta segunda opinião, que podem ler aqui…, foca-se em ponto mais substanciais desta história e das suas personagens. E, apesar de não ser um artigo em exclusivo para ‘Persuasão’, pois falo um pouco sobre cada uma das 6 grandes obras de Jane Austen, considero que via mais do que na minha primeira tentativa de opinar sobre esta história.
Agora, surge-nos o busílis de uma questão paralela: a versão da Netflix desta história.
Fui tirando notas enquanto via o filme e, nisto, não me consegui conter. Vou-vos dando o que escrevi em itálico ao longo deste artigo…
Mudaram tudo! Ou, mudaram a essência das personagens, daquilo que elas são e dos motivos pelos quais perseguiram ou abandonaram os seus desejos.
E, o modo preferido de Contar uma história de forma visual não é Contar, é Mostrar. O visual é, por defeito, mostrado, não?
Só Contar. Nada de Mostrar. Dizem-nos o que querem que vejamos.
Uma Anne Elliot que é atrevida e emancipada nos seus gestos, nunca seria alguém que mantém o auto-controle como prioridade, e que se sacrificaria pelo bem-estar daqueles que a rodeiam.
E, anda sempre bêbeda? De copo na mão a afogar as mágoas?! Amiga, sei o que isso é e, na tua época, isso não seria. Bêbeda ou a chorar nua na banheira (parem de querer capitalizar com ‘As 50 sombras de Grey’, sim?!?).
Anne parece uma desmiolada e não é a única. As personagens estão tão rasas que não há qualquer crescimento que se agarre a elas.
Um Wentworth que não está convicto da dor que sente, que não permite que o ego dite as suas palavras e acções, mas que fala com ela, para ela, sobre ela, perde a dimensão da sua luta interior que o levou a afastar-se por tantos anos da mulher que amava. Se ele sentisse só o que se vê nesta versão, teria superado o ego ferido mais cedo e procurado reconectar-se com Anne… e, não teria crescido quase nada como pessoa.
Que seca! Era suposto este filme ser divertido? Comédia? Onde?
Suponho que a única personagem que foi devidamente aprofundada nas suas formas de ser e pensar foi… Mary. Esta sim é uma representação de Mary que não nos deixa motivos para duvidar da sua natureza. Claro que foi amplamente exagerada nas suas palavras e actos. Grandes discursos faz a nossa Mary nesta versão!
Mary arrancou-me uns sorrisos… não gargalhadas!
Mary a única personagem com carácter! Mesmo se detestável!
Procuram incluir algumas piadas culturais, referências a grandes nomes da literatura e mitologia, atentando para parecerem inteligentes e intelectuais. Concedo que alguma encaixam nesta história, salvando-a nas suas resoluções de diálogo.
Esta Louisa ganha um papel predominante. Nesta versão, ela parece saber mais sobre o amor perdido destas personagens, mas depois faz opções mais do que questionáveis. Uma falsa simpatia que parece agir apenas em proveito próprio.
Louisa a personagem mais mal arranjada delas todas.
Foi um bocado de tempo bem aborrecido. Tão chato que, mais que uma vez, tive de me impedir de pegar no telemóvel para fazer qualquer outra coisa, enquanto o filme estava a dar.
Tiveram tanta dificuldade em nos mostrar quem eram as personagens que, várias vezes, colocam outra personagem a declamar o que acham desta ou daquela, para garantir que o público percebe quem é aquela pessoa. Não é assim que se faz!!!
Um Capitão Harville tão arrogante, que não se coíbe de interferir contra tudo o que é suposto saber… a verborreia inútil.
Finalmente, chega a Cena do polvo e, mais uma vez, tentam salvar uma parte estúpida, com uma alusão pseudo inteligente a um shadow self e significados de sonhos.
E, mais uma vez, Anne vai contra tudo o que a sua personagem original é. Ela nunca seria a pessoa a quebrar o silêncio. A sua família era demasiado imponente, tratava-a demasiado mal, e tinha demasiadas ilusões de grandeza para permitir que ela falasse na ocasião.
Anne não está verdadeiramente construída na significância da sua personagem. Onde está o sofrimento abnegado e discreto que a caracteriza?
Juro que não fui ver este filme para dizer mal. Adorava ter tido uma nova perspectiva desta história que pudesse revisitar amiúde. Verdade.
Não gostei. “And nothing could persuade me otherwise” (mais uma referência ao filme de 2007).
Adoro ‘Persuasão’ e acho que, todos os que padecem de egos crescidos, e corações partidos, beneficiavam de um entendimento maior das personagens desta história. Na necessidade de empatia, e importância de conversação real, para compreender os meandros de algumas situações da vida, que despoletam situações.
Assim, e da forma que esta versão foi construída, terminamos com uma Anne Elliot bêbada até aos ossos, a agachar-se para fazer xixi atrás da árvore, e a sair de si para ser alguém, completamente, banal.
Leiam ‘Persuasão’, o original. Ou vejam qualquer uma das versões cinematográficas anteriores. É tempo bem passado.
Obrigada e Até Breve!
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Referências:
- Artigo: Opinião: “Persuasão” de Jane Austen
- Artigo: Review: ‘Persuasion’ by Jane Austen
- Filme Persuasion, 2007
- Filme Persuasion, 2022