Aqui vos deixo algumas regras para a construção de um bom diálogo, tal como prometido (ver aqui).
Quais os cuidados a ter ao criar um diálogo?
1. Cuidado com as marcações do diálogo
As marcações são as palavras que colocamos antes ou depois do diálogo, como por exemplo: “ele disse”, “ela perguntou”, “respondi”.
Cuidado com a tendência de colocar palavras como “sussurrou” ou “gritou”. Normalmente chega colocar um “Ele disse” e evitar ao máximo usar estes complementos. Quando as personagens começam a “gaguejar de forma estranha”, a “opinar” ou a “rir”, acabamos por distrair os leitores do próprio diálogo.
Normalmente também conseguimos evitar adjectivos. Num bom diálogo, os leitores sabem o que é dito “com alegria” ou “gritado furiosamente”.
2. Basear o diálogo numa cena
É fácil cair na armadilha das marionetas, duas personagens que discutem algo sem texto que o suporte. Todas as conversas ocorrem em algum lugar, e esse local ou cena é importante no diálogo. Ou seja: Onde estão as personagens? Num café movimentado, a conduzir o carro, em casa? Quem está perto dele? Pessoas estranhas, crianças, o chefe?
Não devemos ter acção ou descrição a seguir a cada linha de diálogo, mas precisamos de criar um ambiente, onde as personagens estejam localizadas fisicamente.
Os diálogos telefónicos acrescem em dificuldade. As personagens não estão frente-a-frente, pelo que podemos acrescentar profundidade às cenas usando tons de voz e adicionando ruídos de fundo às cenas.
3. Uso de dialectos e de pronúncias com cautela
Não abusar das palavras escritas noutros dialectos ou com pronúncias estrangeiras. Isto atrapalha a compreensão do texto, e pode causar outras complicações como tornar o texto ofensivo ou cómico, sem haver motivos para isso.
Normalmente, menos é mais. Uma personagem Escocesa não precisa de soar como um poema de Burns, basta uma expressão ocasional e o leitor capta a ideia. Assim como se tivermos uma personagem que seja menos letrada ou que não usa a gramática correctamente, não devemos sobrecarregar o texto com esses erros. Algumas expressões vão estabelecer a “voz” da personagem, não sendo necessário retirar letras em todas as palavras.
4. Não deixar uma personagem monopolizar o diálogo
Normalmente não discursamos nas nossas conversas, na vida real. Em algumas situações, uma pessoa pode falar durante alguns minutos, numa palestra ou num discurso, mas isto limita-se a ocasiões especiais.
É preciso cortar os grandes blocos de discurso de uma só personagem. As outras personagens podem solicitar clarificações, ou interromper o discurso, ou introduzir respostas não verbais das outras personagens (acenar, suspirar, franzir o sobrolho…).
Se o enredo exigir um grande discurso de um só personagem, é preferível mostrar algumas frases do início e do fim, e apresentar um sumário narrativo do que foi dito. Isto é suficiente para o leitor entender a história.
5. Realístico não significa Real
O diálogo deve proporcionar uma sensação de realidade, mas não deve ser uma transcrição de como realmente falamos. Não é aconselhável colocar os “hums”, hesitações e repetições, porque torna-se aborrecido para o leitor quando o sobrecarregamos com maneirismos das conversas reais.
6. Cada personagem tem um padrão distinto de discurso
As personagens não podem soar todas da mesma maneira. À semelhança da realidade, cada um de nós tem uma forma de falar, uma “voz” própria, distinta de todas as outras. Para além desta diferença entre iguais, há ainda distinções em função da idade da personagem.
O discurso de alguém de 13 anos é diferente de alguém de 70. Assim como de género, homem e mulher exprimem-se de forma diferente. Ou diferenças relacionadas com a classe social, a zona geográfica, entre outras. Todas estas características reflectem-se nas muletas verbais usadas, que mudam de pessoa para pessoa, e da verbosidade da personagem.
Um bom truque é separar o diálogo das personagens, retirar as marcações do diálogo e a acção e ver se conseguimos identificar quem disse o quê.
7. Não colocar texto expositivo no diálogo
Às vezes é preciso reunir informação sobre as personagens, mas não devemos forçar estes esclarecimentos no diálogo.
Igualmente, devemos evitar diálogos óbvios entre personagens, ou seja, diálogos com informação que o outro personagem já deveria saber. Se o quisermos fazer devemos assegurar-nos que a conversa é apropriada. Dois amigos que não se vêem há 10 anos, podem colocar a conversa em dia e dar detalhes da sua vida. Aqui a informação não seria óbvia porque as personagens não se relacionaram durante uma certa quantidade de tempo.
8. Usar o silêncio assim como o diálogo
Às vezes, o que não é dito é mais poderoso do que aquilo que é. Se um personagem diz “Amo-te” e o outro não diz nada em retorno, normalmente é mais forte do que uma resposta do género “OK” ou “Também.”
Quando uma personagem se recusa a responder a uma questão, ou a falar com uma pessoa em especial, imediatamente percebemos que algo se passa, sem o autor ser demasiado expositivo, como por exemplo, “João não gostava de falar sobre o seu casamento” ou “João ignorou a chamada no seu telemóvel.”
9. Chega tarde e vai embora cedo
O diálogo não tem de começar na primeira palavra e terminar na última. Se alguém está ao telefone, corta os “Olá, como estás?” “Bem, e tu?”, porque o leitor não está interessado neles, e não acrescentam nada de útil ao diálogo.
Outra dica é terminar uma cena numa das linhas do diálogo. Não precisamos de ler a resposta da outra personagem, porque a informação estará subjacente à conversa que vinha a decorrer. Não precisa de terminar com “Adeus, até à próxima”.
10. Usar correctamente as regras do diálogo
Um diálogo deve ter uma linha para a fala de cada personagem. Pode ter aspas duplas (“ para EUA) ou simples (‘UK) a delimitar o que é dito, ou então usar os travessões para delimitar esse texto ( – Europa). Nesta última situação, o travessão precede a fala e separa-a da intervenção do narrador.
A pontuação deve ser colocada dentro das aspas, terminando uma linha de diálogo com uma vírgula, se estivermos a adicionar texto de marcação, ou com pontuação final (ponto final, reticências ou ponto e vírgula) se estivermos a adicionar uma acção.
Por exemplo:
“Podes chegar aqui?” disse Joana. “Precisamos de falar.”
“Sobre o quê?”
“Como se não soubesses.” Ela cruzou os braços.
O diálogo bem construído impulsiona a acção, enquanto se mantém o leitor devidamente informado e interessado.
Φ
Consideram estas regras quando escrevem um diálogo? Elas contribuem para a melhoria do texto?
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Texto muito útil, linguagem clara.
Vou aplicar em.minhas aulas.
Obrigada.
Obrigada, Ângela.
Obrigado quero fazer um de aventura
Olá, Brenda. Espero que o faças e que seja um trabalho de que te orgulhes. Força!
Muito obrigado pelas dicas. Tenho mais uma dúvida: como escolher entre “aspas” e – travessões – no meu texto?
Olá, Alberto. Não sei se é uma questão de escolha. Convencionou-se que, em ficção, o travessão é o mais utilizado nos diálogos. As aspas sobrecarregam o texto, e são desnecessárias, do ponto de vista do leitor. Bons diálogos são aqueles que o leitor compreende sem ser necessária a pontuação excessiva. É sempre importante observares o que é mais comum no género literário que escolheste para a tua obra.
Obrigado quero fazer um de aventura
Adorei as dicas e estou com uma dúvida. Como faço para colocar os pensamentos do meu personagem para o leitor? Li em outros sites que se pode usar as aspas e outros que elas são um erro. No geral, qual é o mais correto para se usar e se tem outras formas de colocar, quais são?
Bom dia Marconi, em ficção as aspas são utilizadas em diálogo normal, não em diálogo interno. Apresentar os pensamentos da personagem está, directamente, relacionado com o ponto de vista que escolheste para contar a tua história.
Sugiro que leias sobre os tipos de POV existentes. Podes começar por aqui:
http://blog.sarafarinha.com/2013/02/14/recursos-do-escritor-qual-e-o-teu-ponto-de-vista-a-narrativa-na-3a-pessoa-subjectiva/
E, tens outros artigos sobre os diferentes tipos de POV que podes utilizar, que podes ler aqui: http://blog.sarafarinha.com/?s=ponto+de+vista
Obrigada pelo teu comentário e espero ter sido útil.
Sara
Muito interessante, já estou editando meu texto! Antes de ir, uma pergunta: em toda intervenção do narrador no diálogo eu devo reiniciar na linha de baixo? Considerando não mudar o personagem que está dialogando.
Ex: (retirado do meu texto)
[…] Clóvis o vê e lhe passa olhares que remetem a ele não dar mais nenhum passo adiante, o velho fica estagnado e arregala os olhos, porém não diz nada, já Clóvis sim:
“Ei?” Diz ele como se estivesse casando algo perdido.
“O que está procurando aqui?” Clóvis abre os braços querendo explicações.
“Aposto que seja sua dentadura para estar com essa boca murcha, ou você é amante da Deolinda? Já deve ter dado umas virilhadas naquela senhora quando ainda era enxuta e dava caldo há uns 80 anos atrás! Não é verdade?” […]
Desde já, agradeço a assistência.
Att. Jonathan S Bondaruk.
Bom dia, Jonathan. Sem fazer revisão ao texto apresentado e apenas respondendo à pergunta: O narrador, se participa no diálogo, é uma personagem. Logo deve intervir numa linha sua, para que não se confundam as personagens, e o leitor perceba quem está a dizer o quê. Se o narrador é um dos tipos de narrador que intervém mas não é uma personagem, não tem diálogos próprios. Tem comentários de acordo com o tipo de narrador escolhido.
Obrigada pelo comentário e muita sorte com o teu texto.
Olá Sara, como eu faço quando num dialogo um personagem interrompe a fala do outro?
Ex:
—você não está pensando que…
—sim, estou sim.
Olá Lucas, sim as reticências servem para comunicar que uma ideia foi interrompida neste diálogo (ou que se tinha algo mais a acrescentar à frase mas que, por qualquer motivo, não foi comunicado).
Obrigada pelo comentário.
Olá, gostei das dicas, vai me ajudar muito com meus textos.
Apenas uma pergunta: Já vi muitos textos que começam o diálogo com o nome dos personagens seguido da fala, é correto fazer isso?
Olá Cicleide, ser correcto ou não depende muito do autor. Eu, não usaria excepto se fosse um texto como uma peça de teatro, por exemplo. Nos restantes formatos, não me parece que cumpra qualquer função. É sempre melhor criar o texto de forma a que o leitor entenda quem está a “falar” sem ser preciso indicar em cada linha de diálogo.
Obrigada pelo comentário.
Saudações Sara, graça e paz, boa noite. Venho através desta, agradecer pelo texto cheio de informações ricas, da qual aproveitei o bastante, assim posso dizer; também aproveitei e li uns comentários sobre dúvidas que algumas pessoas tinham, dúvidas estas que também eram minhas, mas suas respostas trouxeram esclarecimento ao meu entendimento. Obrigado.
Olá Anderson, obrigada pelas tuas palavras. É bom saber que posso ajudar.
Obrigada