2.Recursos do Escritor: Qual é o teu ponto de vista? A narrativa na 2ª Pessoa

‘É papel do autor definir quem será o narrador ou qual a melhor perspectiva para contar determinada história. É o autor que cria o universo onde a acção tem lugar e é ele que define qual o ponto de vista ou perspectiva sob o qual a história será contada.’ Recursos do Escritor: Qual é o teu ponto de vista? A narrativa na 1.ª pessoa

Narrar2. Segunda Pessoa

Este é o segundo artigo desta série sobre os pontos de vista que o narrador tem à sua disposição para transmitir a história. A narrativa na Segunda Pessoa apresenta as seguintes características:

O narrador narra a cena do ponto de vista de uma só personagem e escreve como se o leitor fosse essa personagem. Usa o pronome “Tu” em vez do nome da personagem que está a contar a história.

É um estilo pouco usado cujo sucesso apresenta dificuldades acrescidas, uma vez que tem de persuadir o leitor a assumir que é uma personagem da história, e que as acções desta seriam as suas.

A vantagem é ser um estilo intensamente pessoal que cria uma intimidade profunda entre o narrador e o leitor.

A desvantagem é a possibilidade de perder o leitor, submetendo-o à inevitabilidade do enredo, e à quase certa discordância do leitor com as acções da personagem.

É um estilo interessante cujas limitações, na minha opinião, não compensam os benefícios. Mas não deixa de originar uns excertos cativantes, que nos atraiem para dentro da história e nos impelem a ficar alerta, e a sentir na pele cada palavra.

Alguns excertos de obras escritas na 2ª Pessoa:

‘Tu deslizas sobre o assento, mais ainda, no teu típico humor das manhãs de segunda-feira: começas a adormecer na atmosfera acolhedora da sala de aulas de Inglês. Embalada pelo tartamudear aborrecido da professora, naquele jeito que ela tem quando fala sobre uma grande obra de literatura inglesa ou algo do género, escrita por alguém importante. Não que estejas interessado. Olhas para o relógio, com um rodar automático de cabeça, 10:15 da manhã. Suspiras e alcanças a tua mala debaixo da mesa, enfiando os livros lá dentro, aqueles em que não te incomodaste a escrever nada. A professora Phillips continua a tentar balbuciar, na sua voz fina, por cima do barulho que se instalou na sala. Sentes uma pontada de dó pela tua baixa e seca professora, enquanto ela tenta recuperar a atenção da turma resmungona.’ ‘Star-Crossed’ de Rachael Wing (tradução livre por Sara Farinha)

‘À nossa volta os fugitivos, nossos companheiros, balbuciam e marcham pela superfície escorregadia da estrada. Nós somos, ou éramos, uma corrente de humanidade, uma onda de exilados que circulam de forma rápida, como que arterial, nesta silenciosa paisagem. Mas, agora, algo nos detém. O vento volta a desaparecer e, na sua ausência, cheiro o suor de corpos sujos e o aroma dos dois cavalos que puxam a nossa carroça improvisada. Tu alcanças-me e seguras o meu cotovelo, apertando-o. Volto-me para ti, desviando uma madeixa de cabelo azeviche da tua testa. Empilhados à tua volta estão as malas e baús que trouxemos, apinhados com tudo aquilo que esperámos vir a ser útil para nós e não demasiado tentador para os outros.’ ‘A Song of Stone’ de Iain Banks (tradução livre por Sara Farinha)

‘ Tu não és o tipo de homem que frequenta um sítio como este ao início do dia. Mas aqui estás tu, e não podes afirmar que o terreno é absolutamente desconhecido, apesar dos detalhes Bright Lights Big Cityestarem um pouco tremidos. Estás num clube nocturno a falar com uma rapariga com a cabeça rapada. O clube é o Heartbreak ou o Lizard Lounge. Tudo poderia ficar mais nítido se pudesses escapar-te para a casa de banho e cheirar mais um pouco do pó Boliviano. Ou talvez não… Algures no passado podias ter minimizado a perda, mas deixaste esse momento passar, pendurado num cometa de pó branco, e agora estás a tentar segurar a moca. Neste momento o teu cérebro compõe-se de brigadas de minúsculos soldados bolivianos. Eles estão cansados e enlameados da sua longa marcha nocturna. Têm buracos nas suas botas e estão esfomeados. Precisam de ser alimentados. Precisam do pó Boliviano.’ ‘Bright Lights, Big City’ de Jay McInerney (tradução livre por Sara Farinha)

Já se aventuraram a escrever na 2ª Pessoa? Gostam? Odeiam? Conhecem mais obras escritas neste estilo?

Querem saber mais sobre os tipos de narrador/ponto de vista usados? Sigam o blogue e não percam os próximos artigos dos ‘Recursos do Escritor’.

Φ

Artigos Relacionados:

Recursos do Escritor: Qual é o teu ponto de vista? A narrativa na 1.ª pessoa

Recursos do Escritor: De que são feitas as histórias

Recursos do Escritor: Os 8 pontos da Revisão de Texto

ΦΦΦΦΦ

Gostaram deste artigo? Então subscrevam este blogue e recebam todas as novidades por e-mail.

Deixem aqui os vossos comentários ou enviem e-mail para: [email protected]

20 comentários em “2.Recursos do Escritor: Qual é o teu ponto de vista? A narrativa na 2ª Pessoa”

      1. Olá, Sara. Gostaria de me colocar aqui como crítica nesta questão da narração em 2a pessoa, porque discordo desse ponto de vista. Quando você define este foco narrativo, você mesma diz: “O NARRADOR narra a cena do ponto de vista de uma só personagem e escreve como se o leitor fosse essa personagem. Usa o pronome “Tu” em vez do nome da personagem que está a contar a história.” Se como você diz, “o narrador narra” já temos a ideia de que o foco se apresenta ou a partir de um “eu” ou “ele” que se dirige a um leitor, tu ou você, (pessoas que no discurso são interlocutores e não locutores). Não seria então o caso de dizer que não há a possibilidade de julgar se este narrador é um “eu” ou “ele”? E que o “tu” e o “você” será considerado um personagem e não quem narra? O que você pensa sobre isto? Gostaria de entender melhor o porquê de podermos afirmar que existe um foco narrativo em alguém que não detém em si o papel de “falar” no texto ou sobre o texto, mas o de ser ouvinte, aquele que está na 2a pessoa do discurso em que claramente se lhe atribui este papel?

        1. Olá, Adriana.

          Podes investigar mais sobre a narrativa na 2ª pessoa em livros, e websites, que focam a parte mais técnica da escrita. Pessoalmente, não sou grande fã deste tipo de narrativa. Acho que é fácil transformar o nosso texto numa amálgama de situações forçadas e previsíveis, e com um tom francamente condescendente de que não gosto.

          Acho que não consigo dizer muito mais para além disto. Não sou fã. Não uso. Mas, aconselho, se possível a leitura de ‘Writing Fiction for Dummies’ e deixo aqui a hiperligação para a minha opinião: https://blog.sarafarinha.com/2014/02/13/opiniaorecursos-do-escritor-writing-fiction-for-dummies/

          Obrigada pelas tuas perguntas e espero que encontres as respostas que procuras.

  1. Bons exemplos 🙂
    Faz-me lembrar os livros-jogos de aventura que lia em miúdo, quando entravamos na personagem do herói e derrotavamos os inimigos 😛 De facto, também concordo que as limitações são maiores do que o benefícios .

  2. Boa tarde.

    Conhece algum livro que seja em segunda pessoa? É tão curioso e incomum, que quero explorar mais.
    Meio que se encontra esses textos em poemas e música, mas livros não.

  3. Tenho um conto escrito em 3 ª pessoa, que depois, eu o reescrevi em 2ª pessoa. A propósito, preciso de leitores betas para os dois textos.

    1. Olá, Odair. Depende da frase completa. Lendo apenas este excerto não me parece que o ‘tua’ (2ª pessoa) se refira ao avô. Seria “dele” ou “sua”, caso se refira ao avô (3ª pessoa), mas depende do que foi escrito no resto da frase.

        1. O narrador narra a cena do ponto de vista de uma só personagem e escreve como se o leitor fosse essa personagem. Usa o pronome “Tu” em vez do nome da personagem que está a contar a história.(…) por exemplo, “Tu e a tua amada…”

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.