Escreve melhor | 8 Orientações

orientações de escrita

Olá a todos! Sejam bem-vindos a este blog.

No artigo da semana passada, Como escrever melhor? deixei-vos com a mensagem de que iria falar um pouco sobre a visão micro da interpretação de “Como escrever melhor”.

Estas são sugestões, ou ideias específicas, que fazem sentido para mim e na minha prática de escrita.

Escolhi alguns exemplos do livro “O Oceano no Fim do Caminho” de Neil Gaiman, para representar algumas destas ideias.

Numerei-as, contudo, isto não significa uma ordem de importância. Também, sugiro que considerem cada uma com a relatividade necessária. Ou seja, estas ideias são guias, não leis. Usem-nas se, e apenas se,  fizerem sentido… e, deixem um comentário sobre o que pensam sobre elas.

#1 Começar in medias res.

A demanda das nossas personagens nesta história específica, é o único assunto que desejamos tratar, no decorrer desta obra ficcional. E, é sempre mais interessante iniciá-la num momento de acção, e que seja um espelho imediato da história que se segue.

A primeira frase é importante, assim como a primeira página e o primeiro capítulo de um livro. Por vezes, este é todo o tempo de atenção que a nossa história terá de um leitor, pelo que temos de a transformar no melhor que ela pode ser.

Começar de forma activa, interessante, a meio de algo que nos prende a atenção é melhor do que aborrecer o leitor logo ali, no ponto de partida.

Por exemplo:

“Eu vestia um fato preto e uma camisa branca, gravata preta e sapatos pretos, perfeitamente engraxados e brilhantes: roupas que normalmente me fariam sentir desconfortável, como se fossem uma farda roubada, ou como se estivesse a fingir que era adulto. Mas, naquele dia, aquela roupa dava-me algum conforto, de certa forma. Estava a usar a roupa certa para um dia difícil.” – Neil Gaiman em “O Oceano no Fim do Caminho”

O que vemos nesta primeira frase?

Aconteceu algo que desconhecemos. A roupa preta, e o fato formal são símbolos de luto e morte. Outro pormenor explícito é que será uma criança que nos conta este início. Uma criança que necessita ser confortada por algo que aconteceu, e cujo conforto reside na roupa pouco habitual que veste, ao invés de um adulto que o fizesse naquele momento difícil. Porquê? O que aconteceu? O que vem a seguir? Porque sinto necessidade de saber e confortar a criança?

#2 Não perder tempo a contar backstory.

Ou, não encher chouriços, como aprendi a olhar para a questão. É possível introduzir pormenores relevantes, comportamentos, pequenos sinais reveladores de coisas que aconteceram no passado, sem contar a história toda de cada personagem, aborrecendo (até à morte) quem lê.

Estabelecer as regras do jogo, quem são as personagens, qual é o Universo em que vivem, o que desejam mudar, e como acreditam que essa mudança pode ocorrer, não precisa de páginas completas das misérias todas que a vida lhes proporcionou.

Como criadores, devemos conhecê-las de forma íntima mas, como escritores, a melhor estratégia é introduzir os pormenores relevantes nos seus modos e acções, abstendo-nos de contar ao pormenor a epopeia da personagem.

Por exemplo:

Fiquei a olhar para a casa recordando menos do que esperava dos meus anos de adolescente: nem coisas boas, nem coisas más. Morei naquele lugar, durante um tempo, quando era adolescente. Parecia não fazer parte daquilo que eu era agora, de forma nenhuma. – Neil Gaiman em “O Oceano no Fim do Caminho”

O que aconteceu naquela casa que o fez esquecer tudo o que vivera ali? Em anos formativos e intensos como os da adolescência? Não precisou descrever os anos de adolescência, porque era um período de tempo que parecia não fazer parte de quem ele era agora.  Porquê? Como pode a adolescência não fazer parte do adulto que ele é agora? Não descreveu a casa, o quarto, as memórias de infância, a família, os problemas, as inseguranças. Não encheu a história de pormenores irrelevantes e que iriam retirar ao impacto do que Gaiman irá relatar depois.

#3 Cortar as palavras não essenciais, e escolher as melhores palavras, que representem a mensagem do texto.

Há muitas formas de dizer a mesma coisa, usando palavras diferentes, os sinónimos. Mas, para além disto, é necessário compreender os diferentes significados de uma palavra. Esta pode relacionar-se com o tema, a personagem, a acção, com uma significância que transcende a palavra em si.

Usar as melhores palavras possíveis é um desafio porque significa expandirmos o nosso vocabulário para esse efeito. Usar as palavras de maior significância para a história em si, significa um bom trabalho com um dicionário. Até os nomes das personagens podem e, arrisco dizer devem, ser indicativos das suas jornadas de crescimento ao longo da história.

Cada nome tem significados. Um ou vários, dependendo do nome. Assim como, cada palavra tem significâncias variadas, e não apenas significados. Escrever “cortar” é diferente de “deslizar” e, no entanto, podem ser usadas numa frase com propósitos diferentes. Por exemplo: “O bote avançava em silêncio, cortando a água.” ou “O bote deslizava sobre a água em silêncio.”

Por exemplo:

“O pequeno caminho da minha infância tinha-se transformado numa estrada de alcatrão, e servia também para separar dois condomínios. Avancei, mais para a frente, para longe da cidade, ao contrário do sentido que devia estar a tomar, e isso fez-me sentir bem.” – Neil Gaiman em “O Oceano no Fim do Caminho”

A infância é um pequeno caminho, dura pouco. Esta é uma comparação entre o caminho físico real, que a personagem percorre e o caminho temporal da infância que a personagem viveu. Também apresenta uma separação entre o que foi e o que é. Passado e presente, entre a figura dos dois condomínios, algo muito moderno, em contraste com a representação que tínhamos do caminho onde a casa dele havia sido. Assim como o contraste entre o caminho de terra batida e o alcatrão que o pavimenta agora. Afasta-se da cidade, ou seja, da vida que tem agora, mas diz que vai para a frente, ao invés de para trás, ao regressar às suas memórias e locais físicos de infância. Ainda diz que vai no sentido oposto ao qual deveria estar a tomar, devia ir em direcção ao presente, à vida adulta mas, ao invés, vai em direcção ao passado e às poucas memórias que tem da sua infância (e mais à frente percebemos a relevância destas palavras, autênticas referências para o que lá vem). Por fim, diz que ir no sentido contrário dos outros o faz sentir bem. Que conforto encontra ele nas sua falta de memória de tempos idos e que parece não recordar?

#4 Conhecer a história de cada personagem.

O seu passado, o seu presente, o que querem ser no futuro, quem são, quem pensam que são, e como vão evoluir para a pessoa que devem ser, antes de produzir um texto final.

Não maçar o leitor com as nossas construções de bastidores, mas apresentar o texto com os pormenores, as subtilezas e as dicas daquele que fez o trabalho de casa e conhece a história de forma íntima.

 

-Eras o amigo de Lettie? Do cimo do caminho?

– A senhora deu-me leite. Estava quente acabado de sair das vacas. – E então apercebi-me da quantidade de anos que haviam passado e corrigi-me: – Não, não foi a senhora, deve ter sido a sua mãe quem me deu o leite. Desculpe.

À medida que vamos envelhecendo, tornamo-nos nos nossos pais; basta viver algum tempo para começar a ver os nossos rostos a repetirem-se no tempo. Recordo-me da Sra. Hempstock, a mãe da Lettie, como uma mulher corpulenta. Esta senhora era magra e frágil, e parecia delicada. Parecia a sua própria mãe, a mulher que eu conhecera com a Velha Sra. Hempstock. – Neil Gaiman em “O Oceano no Fim do Caminho”

Há nisto o conhecimento da evolução das pessoas. Ele revê-se no seu pai e revê a filha da vizinha na mãe desta. Os pormenores incluídos demonstram um passado em comum, sobre o qual ele começa a recordar-se aos poucos, na interacção com esta personagem, que conviveu com ele em criança.

O autor não precisou contar-nos muito sobre estas personagens e a sua história em comum. Começou com um copo de leite, e uma busca por Lettie, alguém que ele começa a recordar, com uma memória morna e acolhedora, tal como o leite que lhe haviam servido.

#5 Desenvolver o nosso estilo pessoal de escrita

Estilo pessoal não consiste em erros ortográficos, prosa floreada, preguiça gramatical, e de dicionário ou enciclopédia. Consiste em praticar a escrita de uma forma tão intensa, e prolongada, que a nossa forma própria de nos expressarmos sobressai naquilo que escrevemos. Em tudo o que escrevemos.

Trabalhar esta expressão pessoal da nossa escrita reflecte-se, seja qual for o género literário, ou projecto, em que estejamos a trabalhar.

#6 Procurar a melhor experiência emocional possível

Construir histórias com atenção aos pormenores emocionais. Ou seja, que emoção (ou falta dela) desejamos imbuir o texto nesta passagem, ou momento.

Conseguimos fazê-lo? O leitor sente o que desejámos que ele sentisse ao ler aquele momento específico da história? Estes são elementos com os quais uma revisão cuidada pode ajudar.

Os seus lábios  roçaram a minha orelha. Ela flutuava no ar a meu lado, de maneira que a sua cabeça estava ao lado da minha, e quando me apanhou a olhar para ela fez o seu sorriso fingido, e então eu não consegui correr mais. Mal me podia mexer. Sentia uma pontada de lado, não conseguia recuperar o fôlego. Estava feito. Senti calor nas pernas e, quando olhei vi uma torrente amarela a jorrar da parte da frente das calças do meu pijama. – Neil Gaiman em “O Oceano no Fim do Caminho”

Ir a correr e constatar que, aquilo que nos persegue está mesmo ali, sem qualquer esforço, ao nosso lado, perto do nosso rosto… medo, cansaço, horror, injustiça, desistência, são tantas emoções que pairam nesta cena e que continuam no decorrer desta cena.

# 7 Procurar o equilíbrio entre a esperança e o desespero

Criamos personagens. Colocamo-las a viver uma história. Atiramos-lhes todos os problemas e dificuldades que conseguimos. Esperamos que elas os resolvam de forma satisfatória ou que, pelo menos, aprendam alguma coisa no processo.

Esta é uma dança de acção, em que o par de dançarinos são a Esperança (de atingir os seus objectivos e desejos, por mais inadequados que eles sejam) e o Desespero (de ver todos os seus planos falharem, em constante ameaça de não ter os seus objectivos e desejos cumpridos)

Há monstros de todas as formas e feitios. Alguns são coisas de que as pessoas têm medo. Outros são coisas que parecem coisas de que as pessoas tiveram medo há muito tempo. Por vezes, os monstros são coisas de que as pessoas deviam ter medo, mas de que não têm. (…)

É melhor tratarmos de mandar a Ursula não sei quê de volta para o lugar de onde veio. – E acrescentou: – Eu sei do que é que ela tem medo. E sabes que mais? Eu também tenho medo deles. – Neil Gaiman em “O Oceano no Fim do Caminho”

Medo de Ursula, dos monstros que existem, e dos monstros que Ursula receia. Há um desespero da personagem em não saber com resolver aquilo que lhe aconteceu (com a devida responsabilidade dele). E, há esperança, pela mão de Lettie que compreende o problema de formas que a personagem principal não é capaz, e lhe mostra a coragem e a confiança que devem ter na possível solução.

#8 Se o leitor consegue imaginar o que vem a seguir, se é previsível, não escrevas essa parte

Não há nada mais aborrecido do que, ao ler uma história, sabermos o que vem a seguir. A surpresa é a nossa melhor arma e, é com ela que, cativamos o interesse de quem lê a história.

Por exemplo, sabemos que uma determinada personagem vai fazer um telefone para perguntar algo. Sabemos a resposta, ou não sabendo, podemos introduzir a informação depois. Saltamos escrever sobre a parte chata do telefonema previsível.

Excepção feita se: houver algum grande esquema por trás desse telefonema, e/ou algum pormenor que é preciso deixar escapar, ou estabelecer algum tipo de correlação nessa conversa.

E, mesmo assim, se é previsível, é melhor evitar o telefonema na totalidade.

– Vocês, as Hempstocks, não são pessoas – disse eu.

– Somos, sim.

Abanei a cabeça. – Aposto que nem sequer é esta a tua aparência – insisti. – Na realidade.

Lettie encolheu os ombros. – Ninguém é na aparência aquilo que é no interior. Nem tu. Nem eu. As pessoas são muito mais complicadas do que isso. Isto aplica-se a toda a gente.

– És um monstro? – perguntei. – Como Ursula Monkton? – Neil Gaiman em “O Oceano no Fim do Caminho”

Inesperado e interessante, simples e profundo em igual medida, e em suficiência. Saltando as perguntas que seriam óbvias, aquelas questões chatas, que nos imaginamos a perguntar, se um Ser que não compreendemos, ou sequer imagináramos que existia, estivesse ali ao alcance da nossa curiosidade.

Assim vos deixo, com estas oito ideias sobre a construção de um texto. Uma visão micro da interpretação de “Como escrever melhor”.

Estas são algumas das orientações que procuro seguir, quando estou a escrever ficção, e que espero que vos sejam úteis.

Deixem as vossas sugestões, aquelas regras que usam quando escrevem um texto e que consideram as melhores… e as piores também, se acreditarem que pode ajudar alguém.

Entretanto…

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